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Entre Nietzsche e a bola, goleiro volta ao Botafogo para estágio

18/08/2016 06h00

Nos últimos dias, um rosto conhecido voltou a frequentar o Botafogo. O goleiro Luis Guilherme está lá com caderno na mão. Sempre sentado na arquibancada e não no campo de General Severiano. Ele deixou o clube há pouco mais de um ano, após o fim do contrato. Hoje com 24 anos, ele era considerado uma grande promessa desde os 13, passou por seleções brasileiras de base, foi profissionalizado aos 15 e viveu altos e baixos da vida de um jogador de futebol ainda muito cedo.

Em 2011, iniciou faculdade de psicologia e optou por conciliar a caneta com as luvas. Pela rotina, até fora do Rio, vai terminar o curso no fim deste ano. Na arquibancada da sede do Glorioso, faz das anotações dos treinos um estágio não obrigatório.

- É uma análise da rotina e do banco de dados dos jogadores do clube. Vários fatores pesam. Se alguém tem Libertadores, se tem mais de 30 anos. Fatores sociais também posso tratar. Meu objetivo é mais coletar informações, aprender ao máximo e ver o que eu posso construir a partir disso. Eu vou vendo comportamentos e tento analisar tudo. Mas ainda tudo sem linha teórica - conta ao LANCE!.

Mas os sonhos debaixo das balizas ainda não acabaram. Assim como os anseios de ver modificada a estrutura social que prejudica a sociedade e a vontade - ainda apenas na vontade - de transformar as experiência e bagagem adquiridas numa especialização na área acadêmica e ensinamentos práticos para jovens que buscam sucesso com a bola.

- Não me formei ainda e esse processo é um pouquinho delicado. Ainda preciso aprender muito, vivenciar, me especializar ainda mais e, se tudo der certo, ter muito mais vivência em campo. É difícil de definir no momento - afirma a ex-promessa alvinegra.

O último clube dele foi o Villa Nova (MG), no primeiro semestre deste ano. Mas o "até breve" à Estrela Solitária, em meados do ano passado, foi dado em formato de carta que, divulgada, viralizou na internet entre os torcedores.

- Eu vejo o Botafogo como a instituição que me formou. Tive os meus esforços, mas não posso negar o que o clube me deu - lembra.

FRUSTRAÇÃO E OTIMISMO

Luis Guilherme foi incorporado ao time profissional por Cuca, em 2008, com 15 anos. Era uma promessa do Botafogo, que passou também por períodos de experiência em clubes europeus. Por mais que o amadurecimento tenha sido precoce, ver que o sucesso esperado não se concretizou frustra o goleiro.

- Olhando para trás, de certa forma, sim. Nem sempre o caminho que traçamos é o que vai nos levar. Fechou-se uma porta. E, em uma perspectiva otimista, tive experiência, planos de ser, de não ser, de renovar, de não renovar, de ser convocado, de estar em clube grande, pequeno, europeu. Isso abre o leque - entende o atleta.

Pouco aproveitado, depois emprestado e, agora, apenas estudando. Definir por que razão um prodígio não se consolidou pode ser complicado.

- É difícil de determinar. Houve lesões em série. O fato de ter subido cedo também pode ser, mas fica no campo da hipótese. A própria vivência no profissional teve tantas coisas que é difícil definir. Precisei de cirurgia, botei parafuso no pé, fiquei parado - recorda o goleiro.

A sua altura atrapalhou?

Tenho 1,84m. Ainda não descobri esse padrão. Futebol é rendimento. Se quiser muitos pré-requisitos perde jogadores. Não me comparando, seria absurdo, mas perderia Messi por ser baixo. Bateram na tecla da altura aqui, mas eu compensava de outra forma. Pode ter sido decisivo. Eu ouvia por alto, via os grandalhões, mas, no dia a dia, não era preponderante. não criava abismo. O Bravo (Barcelona) tem a minha altura. Casillas (Porto) é mais baixo, assim como o Ochoa (Granada-ESP), o Taffarel, o Jorge Campos, o Harlei. Não é uma crítica, mas uma observação. Veja o Ganso, que é inteligentíssimo. Mas o futebol acelerou de uma maneira... Como abrir mão do talento que ele tem por padrão? Eu sempre usava o exemplo do besouro, que contraria as leis da aerodinâmica. O besouro voa! Não pode voar, mas voa.

A quais conselhos da faculdade você se apegou neste período?

Gosto muito de Nietzsche, da filosofia. Foi um portal através do qual eu conheci um mundo. A psicologia é a análise do comportamento humano, e envolve tudo. Esporte, política, literatura, história, geografia. Até de exatas, porque existem fatores que interferem. No futebol, por exemplo, a análise de desempenho está numa crescente. O atleta tem atributos psicológicos que podem ser analisados por teste, mas não pode ser só isso. Ele é um sujeito que tem cultura, crenças. Não pode isolá-lo, achar que ele é produtor de número. Isso é bacana da psicologia e que falo com alegria. Ao mesmo tempo em que vou aprendendo, vejo que tenho um horizonte que as pessoas reconhecem. É o que me deixa mais contente.

Você acha que fez as melhores escolhas?

O padrão americano é de dar ênfase à formatura dos atletas antes de eles virarem profissionais. O basquete lá tem ligas escolares, ensino médio, bolsas nas universidades e, depois, está formado. A maioria dos atletas é formada. Muitos têm a ideia de que o futebol vai dar frutos milionários, mas é uma realidade, às vezes, ilusória. Muitos não conseguem, param nos juniores. É preciso fortalecer o ingresso ou no curso técnico ou na academia. O esporte é incerto. Ainda mais com o prazo para a aposentadoria tendendo a aumentar, é uma vida que pode ficar incerta.

O que te dá esperança de voltar aos campos em bom nível, estando fora do mercado neste momento?

Eu pego como fundamento uma análise do mercado. A maioria dos clubes tem dificuldade financeira. Analiso a conjuntura. Ao mesmo tempo que estou parado, tem jogadores no mercado. É algo delicado. Foi uma escolha arriscada.

Que lembranças, boas e ruins, você tem do período no Botafogo?

Houve n processos. Tive que acelerar muito o amadurecimento. Adaptar-me aos profissionais, voltar à base, ser convocado e, tudo isso, estudando. Lidar com realidade de ser atleta profissional com 15 anos, ao lado de jogadores de 20, 30 anos, treinar no Recreio e estudando, ter esse voo traçado e não ter saído como planejado após um prognóstico bom. A perspectiva de estar fora do futebol momentaneamente. Um período para me reintegrar à realidade comum. Porque o futebol é um universo paralelo, uma bolha. Mídia, redes sociais, salários. Puxa para uma realidade que tem mais problemas. É um processo delicado de readaptação. E estar vivendo isso tudo durante muito tempo, passando por um momento que deveria passar com 35 anos. Comecei e passar e passo por isso muito cedo. Não quer dizer que acabou.

O que o futebol te deu?

Na minha vida, antes, não me faltava o essencial, mas tinha restrições. Pude ajudar minha família, hoje sou casado, consigo ter minhas coisas. Pude financiar meus estudos, livros, cursos... O mais importante, porém, foi a oportunidade de ter acesso à informação e à faculdade. O capital intelectual foi o mais valioso para mim

O que você entende que poderia ser diferente nesse sistema que questiona?

Algumas músicas, como "Admirável gado novo", do Zé Ramalho, e outras dos Racionais Mc's, por exemplo, têm letras que criticam o que está acontecendo. Veja o funk, quando começou, no Brasil, mostrando que também havia lazer nos morros, que quem morava lá também era cidadão, e, hoje, esse mesmo tipo de música é mais voltado para a disseminação de um comportamento consumista, sexista, vulgar. Porque isso dá tanto efeito e a música que critica, não? Por que não tocam mais Racionais, MV Bill? O próprio samba questionava isso. Por que não? Traz para outras coisas da sociedade. Hoje há uma disseminação muito forte de uma sociedade consumista. Para você ser feliz, precisa gastar com bebida, ir para as balada, Jurerê. A que custo? Tem que se matar de trabalhar pra criar um simulacro de ilusão? Você olha para as redes sociais e pensa: "Está todo mundo feliz e só eu estou na merda? Por que o atleta não pode ler, fazer uma faculdade? Vivemos uma série de questões políticas que atrasam o nosso esporte. Até o Bom Senso FC perdeu força. Veio com uma vertente, levantou questões, mas a CPI da CBF foi abafada, por exemplo. Enquanto isso você vê os países vizinhos e o Chile é bicampeão da Copa América. Passávamos com facilidade por algumas seleções e, hoje, perdemos delas. Por que essa discrepância de o país do futebol ter média de público tão baixa? O cidadão comum tem cada vez mais dificuldade de ir ao estádio. Tudo isso é chato, mas têm que dar resposta, elaborar, propor melhorias. O Brasil é uma potência mundial, mas tem que agir como tal. Não adianta trocar treinador, é toda uma estrutura. Nem tudo está errado, mas uma série de questões políticas precisam ser reavaliadas.

Quais as melhores lembranças que você tem do período no Botafogo e na Seleção Brasileira?

Tem algumas. Pegadinhas quando subi. De falarem que era meu aniversário, que iam bater. Coisas de calouro. Uma vez teve a história da camisa do Marcos também. Eu estava no banco, num jogo contra o Palmeiras, e queria trocar camisa com ele. Ele disse: "Pede para o roupeiro ir lá que te dou a camisa, eu vou para o exame antidoping." Aí eu fiquei quieto. Estou mudando de roupa e daqui a pouco me chamam fora do vestiário. Quando fui, estava o Marcão com a camisa. Ele mesmo veio me entregar e eu fiquei muito feliz. Mas houve também muitas viagens, conheci outras culturas, viajei para a África, para a Ásia, para a Europa, para a América do Norte, Central, para países aqui da América do Sul. Tive contato com outras culturas, outras maneiras de pensar a vida como um todo. E essas coisas que ficam, marcam. O material acaba. Uma hora o aparelho de ultima geração fica obsoleto.

E com quem você teve contato nos períodos de intercâmbio?

Com 15 anos, em 2008, eu subi e fui intercalando períodos no profissional, nas categorias de base, na Seleção, e em clubes da Europa. Passei períodos no Arsenal, no Manchester City e no Blackpool (da Inglaterra) e no Lyon (França). Treinava lá 15 dias, no máximo 21, e eles avaliavam. Conhecia outros países. assistia treinamentos. Estive com o Szczesny e com o Fabianski subindo para os profissionais do Arsenal, com o Lehmann e Almunia como goleiros principais. No City, o Hart já era titular. Lorris era goleiro do Lyon e Joëel bats, que pegou pênalti do Zico, em 1986, era treinador de goleiros. No Blackpool, o Kingson, de Gana, estava.