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Ilhado em condomínio e 'sem torcida': os sacrifícios de Uvini na Arábia

Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

27/12/2016 06h30

O zagueiro Bruno Uvini virou sensação na Arábia Saudita. Titular absoluto do Al Nassr, o atleta ajudou a equipe a vencer o clássico contra o Al Hilal Saudi por 2 a 0, na segunda-feira, e avançar à decisão da Copa do Príncipe. A partida foi realizada em Riade, cidade natal das duas equipes, mas o jogador de 25 anos precisou esperar chegar em casa para comemorar o feito com sua esposa. Grávida, Vanessa teve que assistir à partida do sofá de casa, já que na Arábia Saudita não é permitida a entrada de mulheres em estádios de futebol.

As peculiaridades da cultura árabe já não surpreendem mais Uvini e Vanessa. No Al-Nassr desde agosto, o jogador já se adaptou às tradições locais - que incluem regras rigorosas, principalmente em relação às mulheres e à religião muçulmana. Sua esposa, por exemplo, não tem autorização para dirigir ou andar desacompanhada de um homem, e ainda é obrigada a usar a burca.

Para lidar com as diferenças culturais, os jogadores estrangeiros que atuam na Arábia moram em um "condomínio", onde também moram outros brasileiros, estadunidenses e europeus, e onde o que impera é a cultura ocidental.

"É uma minicomunidade estrangeira dentro da Arábia. Tem cinema, academia, boliche, campo de futebol, mercado. Se não quiser, não precisa nem sair de lá. É um local onde as mulheres podem dirigir e andar com roupas normais, sem problemas", contou Bruno Uvini ao LANCE!.

"Se sair do condomínio, aí tem que seguir as leis deles. Não é uma coisa difícil, depois dos primeiros meses, você acaba se acostumando. Claro que é bem diferente da nossa cultura, mas a gente está aqui, no país deles, e tem que seguir a cultura deles. É obrigatório, não é opcional. A gente procura fazer tudo certo, seguir direitinho para não ter problemas",  contou o jogador.

Uvini garantiu estar acostumado aos hábitos locais, mas, recentemente passou por um susto. Nos restaurantes da Arábia Saudita, há um setor reservados para as famílias e outro para os homens solteiros. Veículos da imprensa brasileira divulgaram uma notícia que o jogador teria levado sua esposa à "área dos solteiros", o que teria rendido uma advertência do comitê saudita para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício (CPVPV).

Os veículos creditaram a informação ao jornal Meca. A reportagem dizia que Uvini justificou-se dizendo que "não conhecia a cultura e nem os costumes da sociedade saudita" e "prometeu não repetir o ato". Segundo o zagueiro, nada disso aconteceu: ele não foi à área reservada e tampouco a matéria foi noticiada na imprensa saudita. O desencontro de informações irritou Uvini.

"Isso não aconteceu, não sei de onde tiraram isso. Aqui na Arábia Saudita não deram essa notícia, fiquei sabendo pelos meios de comunicação do Brasil, para você ver quanto é ridículo isso. Ridículo. Hoje, as pessoas só querem clique, clique, clique e polêmica. É falsa a matéria, isso não existiu, não teve advertência. Na matéria havia supostas declarações minhas, e eu não falei com ninguém", indignou-se o jogador, que acredita que a matéria do "jornal Meca" tenha sido uma brincadeira da torcida dos adversários do Al-Nassr.

"Quando vai a um restaurante, há duas entradas, é uma das primeiras coisas que você aprende. Não precisa ser tão inteligente para entender isso. Estamos aqui há seis meses, já conhecemos as leis, e acredito que a gente ande na linha. Fiquei bravo com imprensa brasileira. Não sei se é porque o Brasileiro acabou, não tem o que falar e acaba inventando essas coisas. Aqui tem muita rivalidade, então penso que alguém deve ter jogado isso em algum blog, alguém viu e divulgou como se fosse verdade. Até me assustei quando eu li a notícia, meus amigos me perguntaram o que tinha ocorrido, a família ficou preocupada... Foi uma irresponsabilidade sem tamanho", completou o jogador.

Confira a íntegra da entrevista com o zagueiro Bruno Uvini:

O que motivou sua ida para o Al-Nassr?

Meu passe pertencia ao Napoli. Fique emprestado um ano para o Twente, da Holanda. Fiz uma temporada maravilhosa lá, gostava do clube e tinha uma ótima relação com a torcida, mas foi um ano difícil para eles. Teve muitas polêmicas com antigo presidente, o Twente quase foi à falência, quase perdeu a licença por escândalos do ex-presidente. Então, não tinham condições de me comprar, sequer de pagar meu salário. Como seria meu último ano de contrato, o Napoli só aceitava me vender. Quando apareceu a proposta do Al-Nassr, a transferência foi concretizada. Foi bom para o Napoli e para mim, não é legal ficar parado, e quando você sai por empréstimo, não é a mesma coisa depois no clube. Eu precisava seguir minha vida e consegui isso vindo para a Arábia. Também vim com respaldo do técnico, que pediu minha contratação, o que é ótimo. Além disso, o Al-Nassr é clube gigantesco no mundo árabe, tem uma torcida apaixonada, que lota o estádio e acompanha muito o time. Quis vir brigar por títulos e jogar no maior time do país. Cheguei no aeroporto e tinha quase 500 pessoas me esperando ali com festa, enfim, coisas que eu nunca tinha passado na minha vida. Claro que o jogador também vem para cá para fazer sua independência financeira também, assim como é na China.

Como foi esse escândalo do ex-presidente?

A Holanda é um país muito correto. Começaram a fazer contratos irregulares pela Federação Holandesa, de compra e venda de jogadores. Não sei exatamente o que houve na época, só sei que explodiu bem quando eu estava lá. O cara já havia saído do poder, quem pagou pela situação fomos nós. Ele fez alguns contratos errados, fechou porcentagem para investidores, coisas que em outros países é comum, mas é proibido na Holanda. Só que ele fez encoberto, montou um time forte, foi até campeão holandês. Aí quando descobriram tudo isso, perdemos pontos. Confiscaram muito do dinheiro do clube, bloquearam contas. Falaram que iam tirar a licença, ser rebaixado. A verdade é que a coisa lá funciona e quando descobriram, infelizmente, pessoal que estava no clube naquele momento não tinha mais nada a ver, mas de alguma maneira a gente acabou sofrendo, a torcida, o clube. Mas nem por isso deixaram de pagar um mês de salário ou os funcionários. É muito organizado.

Como é seu relacionamento com a torcida árabe?

É bem parecido com o Brasil, cobrança é altíssima, a torcida é fanática. Em clássico, o estádio lota, e tem capacidade para 70 mil pessoas. É muito disputado o campeonato nacional, tem ótimos jogadores sauditas e estrangeiros que vem para cá, muitos brasileiros na liga. Em cada time, você encontra pelo menos um brasileiro. Quem vem para cá subestimando o futebol, achando que vai ser fácil, se dá mal, porque a qualidade do campeonato é boa, é muito disputado.

Você só havia jogado no Brasil e na Europa antes. Quais foram as maiores dificuldades para se adaptar na Arábia Saudita?

Principalmente em relação à cultura. É muito diferente, precisa de tempo para se adaptar. Meu agente Maurício Nassif me ajudou muito na adaptação, ele veio comigo, e me explicou como era tudo. Tem que tomar cuidado, pois as leis são cumpridas rigorosamente. É muito raro ter assalto, já que as punições são muito rigorosas. As mulheres precisam usar burca para sair na rua e não podem andar desacompanhadas de um homem da família. Nos restaurantes há a parte dos solteiros e das famílias. São as primeiras coisas que você aprende, parece que é coisa de outro mundo, mas é bem simples, na verdade. Muito fácil de se adaptar, não tem segredo. Aprendendo essas coisas, você não vai ter problema. Estamos aqui há quase seis meses, o povo trata a gente bem, a torcida é muito carinhosa, dão apoio, procuram fazer você se sentir à vontade. É admirável.

E o que acontece se essas regras não forem cumpridas?

Se não as cumprir regras, provavelmente alguém vai acabar um dando puxão de orelha da primeira vez, de repente, por a gente ser estrangeiro. Depois não sei o que pode acontecer. A gente sabe que aqui eles são muito rígidos com as leis deles, então nem tenta descobrir o que acontece com quem não cumpre as regras. A gente faz tudo certo aqui, até porque é um país que não é nosso, estamos aqui a trabalho. Tudo parece muito diferente quando a gente fala, realmente é, mas depois de um tempo aqui, você acaba se acostumando mais. Eu não sou o primeiro brasileiro a jogar na Arábia Saudita, nem vou ser o último, pelo contrário, todos os times do campeonato tem muitos brasileiros. Bebeto, Denilson e Thiago Neves jogaram aqui. A família vem junto, e é preciso se adaptar. É coisa nova, para contar para todo mundo, e vivenciar muito mais. Minha esposa é muito parceira, sei que não é fácil, mas ela tem me ajudado muito. A situação fica mais fácil por causa dessa nossa parceria.

E em relação ao idioma, clima e comida? Como foi a adaptação?

Idioma é muito difícil, poucas palavras que a gente acaba pegando, como "habib", que quer dizer amigo. A comida é especialmente muito boa, a gente tem bastante restaurante árabe no Brasil, mas aqui é mais gostosa, bem temperada, com bastante condimentos. Muito carneiro. Aqui as pessoas não comem porco por causa da religião, não tem presunto, bacon, é proibido e você não encontra nada de porco, nem para estrangeiros. Curioso é chegar e ver restaurante com duas entradas.

Qual foi a situação mais inusitada que você vivenciou na Arábia?

Situação mais curiosa foi quando nós ganhamos um jogo importante aqui e o capitão pagou janta árabe para os jogadores. Trouxeram prato enorme de arroz, para cinco pessoas, com um carneiro assado em cima. Quase uma mesa inteira redonda de arroz. E aí você tem que comer com a mão, não pode usar talher. É diferente para a gente. Eu não sabia muito como comer a primeira vez, comer arroz com a mão é meio difícil, né? Aí eu estava sentado ao lado do roupeiro do time, ele estava comendo e me ajudava. Só que ele pegava o arroz, botava na boca dele, e aí ele pegava o carneiro para me ajudar, querendo me ajudar com melhor intenção, pegava, botava a mão na boca dele e pegava depois a comida para ajeitar para mim para eu comer, com a mão que tinha acabado de vir da boca dele (risos).

Como você pretende comemorar as festas de fim de ano?

Eles não comemoram Natal e o Ano Novo deles é em outra data. Aqui está um clima como se não fosse de festas, parece que estamos em um mês normal, como qualquer outro. A gente teve jogo dia 26, eu estava concentrado. Teremos jogo dia primeiro de janeiro, e é capaz de eu passar a virada concentrado. Faz parte da profissão de jogador. Não é só na Arábia, na Premier League é a mesma coisa, e não tem nada a ver com religião. Para mim é algo novo, será a primeira vez que vou passar o Natal longe da família, mas foi a profissão que escolhi, são os sacrifícios que a gente tem que fazer.

Tem vontade de voltar a jogar no Brasil?

Tenho vontade, sim. Acho que isso balança todo jogador brasileiro que está fora do País, ainda mais se é para jogar em um time grande. Voltar a jogar no Brasil, perto do seu povo, morando na sua casa... não tem coisa melhor. Nessa época que o mercado está agitado sempre surge rumores e a gente fica balançado. Esse ano está sendo maravilhoso para mim, a torcida do Al-Nassr me deu muito prestígio em pouco tempo. Estamos em terceiro no campeonato, brigando pela ponta, cinco pontos atrás do líder, sou titular. Estou mantendo minha carreira ativa aqui enquanto a oportunidade no Brasil não aparece.

Qual seu maior sonho como jogador?

Maior sonho seria jogar uma Copa do Mundo. Estive na Seleção, senti gostinho ali, mas nem perto do que seria jogar Copa. Falando hoje, aqui no Mundo árabe, parece ser impossível, mas tem nada impossível. Claro que jogando aqui fica mais difícil, mas ninguém sabe o dia de amanhã. Hoje a gente vê jogadores jogando na China e sendo destaque na Seleção... nada é impossível.

Quais suas principais lembranças da época do São Paulo? (Uvini jogou nas categorias de base do Tricolor entre 2007 e 2010, e no profissional até 2012)

Principal lembrança do São Paulo é a época da categoria de base. Ter vivido tanto tempo ali, ter subido com galera muito boa, como Lucas, que está no PSG, Casemiro, no Real Madrid, Oscar, que ficou tanto tempo no Chelsea, e Wellington, que jogou no São Paulo e no Inter. Nossa geração foi maravilhosa, muitos jogadores vingaram e estão no futebol aí, o que não é fácil. Só de conseguir vencer na base do São Paulo, chegar ao profissional e conseguir chegar a jogar no profissional é muito difícil. Só quem passa por aquilo sabe o que é a cobrança. São Paulo te oferece muito nas categorias de base, te dá todo o suporte possível, e, com isso, vem mais cobrança e concorrência ali dentro. O time me moldou como pessoa, como profissional, e isso não há valor que pague. O pouco nome que tenho no futebol devo à força do São Paulo.

E da rápida passagem pelo Santos, em 2014?

Tive uma passagem rápida pelo Santos, foi ano conturbado também, de troca de diretoria. Eu fico um pouco frustrado por não ter feito mais pelo clube, vinha tendo sequência boa com Oswaldo, teve aquele lance contra o Cruzeiro, no Mineirão, em que levei uma cotovelada de Marcelo Moreno e fraturei o rosto. Precisou de cirurgia, fiquei três meses parado, interrompeu minha sequência. Legal foi o jogo em que voltei. Já era Enderson Moreira o treinador, ele decidiu me colocar, ainda havia muita gente preocupada, porque foi uma lesão difícil. Ele me colocou. A gente foi jogar contra a Chapecoense em Chapecó. O jogo empatou em 1 a1, com gol meu. Foi um momento especial.

Quais seus maiores ídolos - treinador e jogador?

Meu maior ídolo como treinador e jogador é meu pai. Ex-atleta profissional, jogou sua carreira praticamente toda na Ponte Preta, e era zagueiro, assim como eu. Hoje ele tem uma escolinha de futebol na minha cidade, no interior de Capivari. Já faz quase 20 anos que ele tem essa escolinha, depois que parou de jogar. Tudo o que ele fala para eu fazer, eu faço, e sempre dá certo. É o melhor treinador que já vi, o melhor jogador que já vi. Ele sabe muito. Devo muito ao meu pai, tudo que eu alcancei, foi porque eu escutei esse cara.

Oswaldo de Oliveira te procurou quando ele estava no Palmeiras. Você chegou a ser procurado por ele enquanto ele estava no Corinthians?

Realmente teve contato do Oswaldo na época do Palmeiras. Ele tinha acabado de sair do Santos, tinha acabado meu contrato no Santos também, Napoli dificultou a coisa e não aconteceu. No Corinthians não cheguei a ser procurado. Só quem trabalhou com ele sabe o quanto ele é fenomenal, diferenciadíssimo como pessoa e como treinador. Quando ele foi embora do Santos, na época eu estava lá, os jogadores choraram quando ele saiu.

Você estava no time que conquistou a prata na Olimpíada de Londres, em 2012. Como foi ver o Brasil, enfim, campeão?

Nossa geração bateu na trave em Londres. Não participei tanto, Thiago Silva era titular e capitão. Ajudei como podia. Faltou pouco. Foi um pecado a gente ter perdido, a gente tinha um timaço. Esse ano me senti aliviado pelo ouro, foi merecido. A gente tem que lutar muito pelo nosso País, quando a gente fala do Brasil aqui fora, todo mundo respeita. Nosso país nunca pode perder esse moral, essa alegria. Fiquei muito feliz com o título, vibrei como torcedor. Sou realizado por ter uma medalha olímpica, mesmo que a de prata.

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