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A história por trás de Colo-Colo x Botafogo: um duelo que já adiou um golpe

08/02/2017 07h00

Santiago, Chile, 8 de maio de 1973. O estádio Nacional tinha capacidade para receber 40 mil pessoas de maneira confortável, mas cerca de 80 mil estavam nas arquibancadas naquela noite. Em campo, Colo-Colo e Botafogo decidiam seus destinos no triangular semifinal da Copa Libertadores daquele ano. O time da casa abriu 2 a 0, mas o Glorioso conseguiu uma virada impressionante para 3 a 2.

Com este placar, restaria à equipe brasileira somente derrotar o Cerro Porteño, na última rodada, no Maracanã, para chegar à decisão. Porém, no último lance, o atacante Leonardo Véliz surgiu livre dentro da área e empatou a partida. Para a equipe de General Severiano, ali foi adiado o sonho de ser campeão da Libertadores. Para o país banhado pelo Oceano Pacífico, o gol adiou um golpe militar que seria dado meses depois.

Explica-se: Em 1973, enquanto o Colo-Colo encantava a América, o Chile vivia momentos de tensão, com blocos de esquerda e direita em choque. O socialista Salvador Allende era o presidente do país desde 1970, mas a posse dele fora contestada pela extrema-direita. Entre 1970 e 1973, grupos extremistas tentaram a queda de Allende por meio de ataques terroristas. O Chile vivia crise econômica e os protestos nas ruas de Santiago geralmente acabavam com mortos e feridos.

Porém, a boa campanha do Colo-Colo na Libertadores havia gerado comoção entre a população. Militares já tinham arquitetado o golpe em maio daquele ano, mas era preciso esperar a eliminação dos colocolinos: qualquer ação que pudesse atrapalhar o time poderia gerar uma revolta ainda maior contra a tomada do poder. O gol de Véliz no fim foi um balde de água fria nos militares. O Colo-Colo ainda precisava que o Cerro Porteño não vencesse o Botafogo para ir à final. E deu Botafogo, 2 a 0. O golpe teve que ficar para depois.

A teoria acima é defendida no livro "Colo Colo 1973, el equipo que retrasó el golpe" (a equipe que atrasou o golpe, em tradução do espanhol). A obra, lançada em 2012, foi escrita pelo jornalista chileno Luis Urrutia O'Nell, também conhecido como Chomsky. Ele é um dos mais respeitados jornalistas chilenos e foi premiado como melhor jornalista esportivo do país, em 2008. Em conversa com o LANCE!, O'Nell detalhou o cenário do Chile em 73, e justificou sua tese.

"O livro traz o testemunho de pessoas que vivenciaram aquele período. O Colo-Colo era o único fator de união num país altamente polarizado. A teoria de que o avanço até a final atrasou o golpe é muito fácil de ser observada. Quando o Colo-Colo perde a Libertadores para o Independiente, em 6 de junho, não demora muito para uma forte ação militar contra Allende. Em 29 de junho ocorreu o "Tanquetazo", uma tentativa de golpe com o uso de tanques e carros de combate pesados. A tentativa fracassou ao ser sufocada por soldados leais aos constitucionalistas. Porém, em 11 de setembro, o golpe comandado por Augusto Pinochet teve êxito. Acabou o futebol, veio o golpe", disse O'Nell.

Luis Urrutia O'Nell nasceu em 1951 e estava no estádio Nacional no Colo-Colo x Botafogo. Torcedor colocolino, ele lembra a euforia com o gol de Véliz no fim.

"O Colo-Colo abriu 2 a 0, mas o Botafogo tinha o controle do jogo e conseguiu virar. O Colo-Colo só dominou a partida no fim, pois tinha que buscar o placar. O empate foi nos acréscimos. O país estava paralisado pelos choques políticos, mas aquele gol gerou uma festa incrível. Foi uma noite de Carnaval em Santiago", disse, destacando um jogador histórico daquele time:

"Tinha um atacante especial: Carlos Caszely. Além de ser um jogador espetacular, também compartilhava do pensamento político do presidente Allende. Depois, já na ditadura, ele mostrou toda a força de sua personalidade ao se negar a cumprimentar Pinochet durante uma cerimônia", explicou.

Caszely tinha apenas 22 anos quando encarou o Botafogo. Três anos antes, já com um talento famoso, fez questão de apoiar publicamente a eleição de Allende. Com o tempo, ele virou lenda. Não apenas pelo que fez no futebol, disputando duas Copas do Mundo pelo Chile (1974 e 1982), mas por ter sido um ícone da resistência contra o regime militar. Hoje com 66 anos, o ex-atleta ainda mantém o bigode dos tempos de artilheiro da Libertadores-73 e as palavras fortes contra Pinochet. Humilde, Caszely atendeu o LANCE! para contar suas memórias.

"O clima no país era complicado em 1973. Existiam muitas adversidades, muito ressentimento. O único fator que unia o Chile era o Colo-Colo. Era a grande a mobilização para ir ao estádio, para ver os jogos na TV, para escutar as partidas no rádio. Pinochet foi muito ruim para o país, muito ruim", comentou Caszely.

Augusto Pinochet se autoproclamou presidente em 1973. Muitos se dobraram ao general, mas não Caszely. Antes da Copa de 1974, Pinochet chamou a seleção para ir ao palácio do governo, pois queria saudar o elenco. Caszely, ligado à esquerda, estava ciente de torturas que aconteciam no país. Na cerimônia, todos se enfileiraram para cumprimentar o presidente. Todos, menos Caszely, que apertou as próprias mãos. De imediato, ele perdeu o posto de capitão da seleção. Semanas depois, viu sua mãe, Olga Garrido, também ser presa e torturada.

Após a Copa de 74, "ordens superiores" proibiram Caszely de aparecer em convocações da seleção - o veto só acabou em 1979. Perseguido, teve que jogar na Espanha entre 1974 e 1978, ano em que voltou para o Colo-Colo. Ele deixou os gramados em 1986, mas seguiu atuante no campo da política. Em 1988, fez campanha contra Pinochet no plebiscito popular que decidiria se o general ficaria ou não por mais oito anos no poder. Caszely foi à televisão com sua mãe para defender o "não", que no fim ganhou com 55.99% dos votos válidos. Era o término de um período sombrio. De acordo com números oficiais, a ditadura de Pinochet deixou 3.200 mortos e 38 mil torturados.

"As pessoas se solidarizam comigo até hoje nas ruas", disse.