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Tensões geopolíticas e o combate à violência na Copa da Rússia de 2018

Kirill Kudryavtsev / AFP
Imagem: Kirill Kudryavtsev / AFP

17/10/2017 09h00

Grandes eventos esportivos de escala mundial, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, sempre tiveram como principal motivador a celebração das modalidades esportivas e a união dos países participantes. Infelizmente, o alcance mundial das competições tornou-se palco para terroristas cometerem atrocidades na frente das câmeras.

Neste ano, antes da Copa das Confederações ser realizada na Rússia, um atentado no metrô de São Petesburgo, uma das cidades-sede do Mundial, deixou 14 mortos e o alerta ligado. A Copa do Mundo se aproxima e o cenário geopolítico que envolve o país deixa o Comitê Organizador Local ainda mais atento a possíveis ataques violentos durante as partidas e até mesmo fora dos estádios. As tensões entre o governo de Vladimir Putin e os principais países ocidentais não podem ser comparados ao período da Guerra Fria, mas a presença de milhares de torcedores de nações consideradas "não-amigas" liga o alerta na Rússia.

Síria e Estados Unidos fora: alívio?

No início da semana, tanto a Síria quanto os Estados Unidos foram eliminados nas suas respectivas eliminatórias e não disputarão o Mundial em 2018. Considerados os países mais antagônicos atualmente para a Rússia, a ausência das duas seleções pode gerar um alívio para as forças policiais russas.

A Síria fez campanha surpreendente nas eliminatórias asiáticas, e só foi derrubada pela Austrália na repescagem do continente. Enquanto os torcedores lamentavam o fim do sonho de disputar a primeira Copa do Mundo, os russos viam com certo alívio a derrota do país, já que seu apoio ao governo de Bashar Al Assad afeta de forma negativa sua relações com a União Europeia, outros países árabes e os Estados Unidos.

"A relação com os americanos, em especial, vem se desgastando com o governo Trump, e diplomatas dos dois países foram chamados de volta. Por outro lado, os americanos são quem mais compram ingressos na Copa, e a ausência da seleção norte-americana apresenta uma queda significativa de renda. Sentimento agridoce para os russos - explica Matias Pinto, historiador da Universidade de São Paulo.

Apesar da Síria e EUA ficarem de fora da Copa, a Rússia se prepara para receber França e Alemanha, países europeus que sofreram ataques terroristas recentemente, além da Arábia Saudita, principal financiador do Estado Islâmico no Oriente Médio. A Copa do Mundo ainda irá contar com a presença do Irã, país de maioria xiita que vive sob a mira e ataques constantes dos rebeldes do Estado Islâmico.

Uma Copa do Mundo com países em situações políticas tão extremas e delicadas vira prato cheio para uma possível ação terrorista. Para combater qualquer tentativa violenta, os russos tem como exemplo de segurança a Eurocopa da França, em 2016, que mesmo após o triste atentado em novembro de 2015, conseguiu organizar um campeonato europeu sem maiores problemas de segurança, apreendendo suspeitos assim que entravam no país. Ainda assim, a Eurocopa não ficou livre de atos violentos, gerados por outra questão que assola o futebol na Europa: os hooligans.

Hooligans na Rússia

A Eurocopa da França gerou alívio aos organizadores pela ausência de ataques terroristas, mas as brigas entre torcedores e hooligans nas ruas francesas gerou muita dor de cabeça para o comitê organizador. Para a Copa do Mundo, a atenção com os hooligans será dobrada, já que o país é conhecido por ter os hooligans mais violentos do futebol mundial, atrás apenas da Inglaterra - que estará na Copa em 2018!

A maior preocupação da Rússia será manter a segurança dos torcedores comuns, principalmente os estrangeiros, diante da presença dos hooligans, que mesmo não entrando nos estádios entram em brigas ao redor dos mesmos. Os ingleses não são a única preocupação: os torcedores poloneses também são uma ameaça à segurança, já que seus hooligans são tão violentos quanto os russos e ainda guardam ressentimento em relação ao passado dos dois países, cheio de conflitos e invasões territoriais.

Além da violência dos torcedores, o futebol na Rússia sofre com o racismo, a xenofobia e a homofobia. Segundo um levantamento da Fare Network, nas últimas duas temporadas, os torcedores russos protagonizaram 190 incidentes de racismo nos estádios russos. Jogadores brasileiros são vítimas comuns, e o casa mais recente foi do goleiro Guilherme, que atua pelo Lokomotiv Moscou. Durante a decisão da Superliga Russa, a torcida do rival Spartak Moscou gritou ofensas em direção ao goleiro, com cânticos que diziam "Por que a Rússia precisa de um macaco?".

Para combater os casos de racismo nos estádios, a Federação Russa de Futebol (RFU) criou um sistema de monitoramento antirracista no campeonato nacional. No entanto, as ações efetivas não geraram o resultado esperado, como explica o historiador Matias Pinto, da USP.

"Nem a Federação Russa nem a Fifa tomam medidas mais duras para combater o racismo. A punição se resume a multas financeiras, não tão caras assim, que ficam sob responsabilidade do clube. O torcedor que cometeu o ato racista não é identificado nem punido de forma individual, e essa impunidade faz com que os racistas continuem a gritar ofensas nos estádios", disse.

O medo de estrangeiros serem alvos de ataques racistas e xenófobos preocupa a Rússia. Como Matias Pinto lembra, durante as Olimpíadas de Inverno de Sóchi (2014) e a Copa das Confederações deste ano, incidentes envolvendo racismo chamaram atenção da imprensa estrangeira, principalmente após denúncias de jogadores de Camarões alegando maus-tratos por parte da staff dos estádios, além de desfiles nas ruas de Sóchi envolvendo blackface.

Racismo e xenofobia não são os únicos preconceitos que assolam parte dos torcedores russos. Tal como acontece nos principais centros do futebol mundial, incluindo o Brasil, os torcedores também são extremamente homofóbicos. No entanto, as federações são mais brandas em relação aos cânticos e bandeiras homofóbicas, e pouco é feito para combater. Na primeira rodada do Campeonato Russo, o Dínamo de Moscou foi punido por manifestações racistas de sua torcidas, mas seus torcedores também exibiam cartazes com mensagens homofóbicas. Nunca foram punidos por isso.

Durante a Copa das Confederações, gritos homofóbicos a cada tiro de meta se popularizam, principalmente com a presença da torcida mexicana. Na ocasião, as federações foram punidas com multas, e a Fifa realizou uma campanha de conscientização nos estádios. Para a Copa do Mundo, será necessário ir além.

Boicote na Copa do Mundo?

O cenário de tensão entre nações lembra parcialmente o último grande evento esportivo realizado na Rússia: os Jogos Olímpicos de Verão de 1980, em Moscou. Naquela época, o mundo vivia dividido sob a angústia da Guerra Fria, que colocou a ex-União Soviética no centro das atenções ao lado dos americanos.

A tensão entre os países chegou ao seu ápice quando os atletas americanos boicotaram a Olimpíada, seguidos por mais de sessenta países. Os atletas das nações que aderiram ao boicote não foram proibidos de disputar a competição, mas o fizeram sob a bandeira Olímpica. Questionado sobre a possibilidade de um novo boicote na Rússia, dessa vez na Copa do Mundo, Matias Pinto descarta qualquer possibilidade:

 "Vivemos um contexto global muito diferente daquele de 1980. A sociedade globalizada não vê mais como interessante fazer esse tipo de manifestação, principalmente pelo aspecto financeiro. A Copa do Mundo é mais do que um torneio de futebol, envolve muito dinheiro, e ninguém vai querer ficar de fora"

No entanto, Matias Pinto não descarta um boicote à próxima Copa do Mundo, no Qatar em 2022. Diferente da Rússia, o país do Oriente Médio não possui uma cultura de futebol fortificada, sua seleção teve campanha vergonhosa nas Eliminatórias, e seus clubes vivem apenas do dinheiro dos sheiks milionários. O fator negócio do futebol só aumenta com a inclusão da Qatar Airways como patrocinadora do Mundial.

Além da questão financeira, pesa também as denúncias de violação dos direitos humanos nas construções dos estádios para a Copa. Até o último mês, mais de 1200 trabalhadores morreram durante as obras, e a estimativa é que esse número aumente até o início da competição. A pressão dos países participantes também pode ser um motivador para um boicote, já que o calendário desse Mundial será diferente: em vez de junho/julho, a Copa será realizada em dezembro/janeiro para evitar o forte calor, mas colidindo com a temporada europeia. Resta saber se a posição de entidades como a UEFA e a Conmebol serão suficientes para mudar a Copa de 2022.