Topo

Escolhas certeiras, peças rejeitadas... Os segredos na montagem da Chape

05/12/2017 12h10

Em 3 de dezembro de 2016, a Arena Condá recebia o velório coletivo das vítimas da queda do avião da LaMia, na Colômbia. Entre lágrimas de tristeza e saudades, muitos se perguntavam como seria o futuro da Chapecoense, como o clube buscaria forças para se reerguer. De maneira incrível, exatamente um ano depois, o Verdão do Oeste conquistou uma vaga na Libertadores-2018, terminando o Brasileirão na oitava colocação - e com a melhor campanha do segundo turno. Uma volta por cima digna de filme hollywoodiano, conquistada com muito trabalho e convicções firmes. O LANCE! conversou com Rui Costa, diretor executivo da Chape, contratado dez dias após a tragédia no ano passado. Ele contou detalhes de como montou o elenco praticamente do zero.

Todas as contratações foram feitas de maneira criteriosa. Diversos jogadores foram oferecidos ou se ofereceram à Chape depois da tragédia, porém Rui Costa foi frio: "Tivemos trabalho para escolher jogadores e para negar atletas. Chegava de lista de dispensa dos clubes até pai que filmava o filho jogando no pátio de casa, no gol, dizendo que o filho estava apto a ajudar a Chapecoense".

Vinícius Perazzini: Como foi o primeiro contato da Chapecoense?

?Recebi uma ligação do presidente Plínio (David de Nês Filho), que na época era vice-presidente, pedindo que eu estivesse em Chapecó no dia seguinte para me reunir às 8h. Eu estava em Porto Alegre. Compareci no horário combinado. No local, também estava o vice administrativo e financeiro, Ivan Tozzo. Foram duas pessoas que eu encontrei que estavam muito abaladas pela tragédia e ao mesmo tempo eram as mais fortes para cumprir o caminho que era necessário. Eles me entrevistaram e, ao fim de três horas de conversa, falaram uma frase que nunca vou esquecer: "Bem-vindo à família de Chapecó". Foi assim que começou, em 9 de dezembro de 2016. Cheguei com a roupa do corpo e fiquei.

Qual foi a maior dificuldade inicialmente?

?Foram muitos os desafios. Por mais que a gente tivesse, desde o início, todas as condições de trabalho e autonomia, a gente vinha para ocupar o espaço de pessoas que se foram na tragédia, que não deveriam ter saído do clube. Naturalmente, as pessoas (da comunidade e torcida) nos olhavam com um pouco de desconfiança. Rejeição é uma palavra forte, mas havia um certo desconforto pela nossa chegada. Quem são essas pessoas que vão ocupar o lugar dos nossos amigos? É normal, no contexto de perda. Não eram olhares de raiva, mas de lado. Mas isso foi muito interessante para mim, como ser humano. Você ter condições de superar isso é um aprendizado profissional e humano. Com o tempo fomos todos acolhidos. As coisas foram mudando. Foram percebendo que a nossa causa era a deles e a deles era a nossa.

Muitos clubes prometeram ceder jogadores após a tragédia. Isso aconteceu?

Os clubes fizeram muitas promessas em momento de comoção. Penso que eram muito mais um gesto de solidariedade, de demonstração "do que eu posso fazer por este clube", do que algo razoável. Diversos clubes se manifestaram publicamente, colocando à disposição profissionais, só que a realidade não foi essa. Tivemos trabalho para escolher jogadores e para negar atletas. Chegava de lista de dispensa dos clubes até pai que filmava o filho jogando no pátio de casa, no gol, dizendo que o filho estava apto a ajudar a Chapecoense. A comoção era tão grande, que muitos não se deram conta de que a Chapecoense ainda era profissional. Em algum momento as pessoas pensaram: "Acabou o clube, então agora vai virar um clube amador". Todo jogador que foi emprestado para nós, mesmo alguns em condições favoráveis de valor, foi por uma parceria profissional. Ninguém pegou o seu melhor atleta, seu atleta mais caro, e entregou para a Chape. Isso nunca existiu. E não teria porque existir, porque nós não tínhamos essa expectativa. A gente precisava construir o time com a nossa capacidade. Nós ajudamos e fomos ajudados.

Como foi o processo de filtragem para a escolha das peças?

Tivemos um trabalho talvez maior para dizer não, porque o volume de coisas que vinha para nós, algumas até folclóricas, era enorme. Não estou criticando isso, entendo que foi fruto do momento de comoção. Quantas pessoas vieram a público, ocupando espaços nobres... "Vamos ceder tantos jogadores". Não se confirmou depois. Mas as pessoas são mentirosas? Não. Foi uma manifestação no momento de comoção. Fomos observando opções, traçando perfis. Que tipo de jogador não está jogando no clube tal, o que ele pode oferecer... Nós fomos muito criteriosos e felizes na escolha dos atletas. Pouca gente falava do Andrei Girotto, que rendeu um valor importante para o clube, do Reinaldo, e de tantos outros jogadores que chegaram coadjuvantes e viraram protagonistas.

Que tipo de ofertas folclóricas você recebeu?

?É difícil dizer isso, porque posso ser mal interpretado, mas o pai fazer vídeo do filho não é compatível para o futebol profissional. Situações de ex-jogadores... Mas não os jogadores que falaram, Riquelme, Ronaldinho, isso nunca aconteceu. Tivemos também muitas situações de pessoas que queriam ganhar em cima da Chapecoense, oferecendo coisas absurdas, se valendo de uma condição de fragilidade que imaginavam que nós teríamos para tentar fazer negócios absolutamente vantajosos para elas. Mas o pai mandar um vídeo do filho saltando no pátio de casa, mais folclórico que isso não tem... Fora os e-mails que eu recebi de pessoas... "Olha, eu tenho tantos anos, joguei no futebol amador, estou à sua disposição e posso estar segunda-feira na Chapecoense". Recebi e-mails de pessoas que nunca tinham jogado futebol profissional na vida. As pessoas, no momento de comoção, não entenderam que a Chapecoense continuava sendo um clube de Série A.

Como foi a rotina em dezembro do ano passado e janeiro?

Fazíamos um trabalho que durava das 8h às 22h da noite, e quando chegava em casa a gente ainda continuava por telefone. Começamos com 97 atletas mapeados, a partir do banco de dados que juntamos aqui. Esse banco passou para 90, depois para 56, depois para 40 e tantos atletas. Fizemos mais de 40, 50 negociações. Muitas começaram e não terminaram, se frustraram. Mas tem algo que me deixa orgulhoso: nem todos os que escolhemos que estão aqui, mas todos que estão aqui nós escolhemos. Às vezes vinham... "Eu tenho tais e tais jogadores". "Esses eu não quero. Quero o outro que você tem". "Esse não. Tenho esse aqui". "Esse eu quero". Se tivéssemos montado um elenco com os jogadores que nos foram liberados, a gente teria time em uma semana. Mas em 6 de janeiro não tínhamos time formado. Isso me causava uma apreensão muito grande, mas a gente queria montar um time da nossa construção. A todo momento a gente pensava: precisamos ter jogadores com capacidade de relacionamento, porque a torcida vai cobrar desse time o nível de relacionamento e comprometimento do time do ano passado. Como você faz isso? Com jogadores excêntricos e vaidosos? Não. Você faz isso com um grupo de pessoas que rapidamente se reconheçam, tenham boa convivência em grupo. Além da qualidade técnica, buscamos jogadores com qualidade pessoal, um fator que é tão importante quanto a qualidade técnica.

Tem algum jogador que você queria muito e não foi para a Chapecoense?

?Não posso falar nome, porque daí eu crio um problema aqui, mas diria que tem uns seis jogadores que foram protagonistas na Série A que eram para estar aqui. E não eram jogadores protagonistas. Nós sabíamos que seriam. Isso mostra que o nosso mapeamento estava muito bem feito. Um desses jogadores, que hoje está com chance de ir para clubes gigantes, nós deixamos de trazer por R$ 10 mil a mais. Aí você vai me perguntar: Isso foi um erro? Não... Isso é compromisso orçamentário. E mesmo que eu desejasse aquele atleta mais que tudo, a gente não podia sair da política clara de orçamento que o clube tem. Isso é a pedra filosofal: aqui não se gasta mais do que se arrecada. É uma política do clube e minha. Deixei de trazer jogadores que poderiam fazer a diferença por essa filosofia. Mas trouxemos outros muito importantes. Estou preparando um relatório. Se você olhar no âmbito geral, avaliando os atletas que trouxemos e o retorno que eles deram, o índice de acerto que tivemos foi altíssimo. Eu só tenho a agradecer aos jogadores que estão aqui.

Então o segredo é contratar jogadores com "pés no chão"?

Eu não diria jogadores "pés no chão". A gente precisa desfazer dessa imagem de simploriedade da Chapecoense. É um clube que conquistou seu espaço, com características muito especiais. já tive a oportunidade de conhecer o mundo através do futebol e a Chapecoense parece um clube catalão, basco. Os princípios da cidade, da comunidade, estão muito presentes dentro do clube. Quem chega, é logo contagiado por esse espírito. Tradicionalmente, a Chapecoense, pelo seu ambiente, pelas condições de trabalho que oferece, consegue tirar o melhor dos jogadores que chegam. Existe um ambiente muito propício na cidade. Uma cidade pequena, de um clube, e depois da tragédia pela qual o clube passou, mesmo aqueles que não se preocupavam com futebol passaram a torcer pela Chapecoense. O clube passou a ser a bandeira da cidade, passou a ser o retrato da superação. Isso serve de exemplo para cada uma das pessoas na cidade. Se esse clube se reconstruiu da tragédia, nós conseguimos qualquer coisa. Quando um pai traz o filho para ver o (Jakson) Follmann sorrindo, o Neto, o Alan (Ruschel), eles ficam com a certeza de que nada é mais difícil do que esse trio passou. O clube virou uma coisa muito forte. É um clube com pessoas que são capazes de virar o jogo.

SOBREVIVENTE DA TRAGÉDIA NARRA O GOL QUE PÔS A CHAPE NA LIBERTA

Em 1º de dezembro de 2016, Assis não descartou a possibilidade de Ronaldinho Gaúcho defender a Chapecoense. Houve algum avanço nessa história?

Não, não... Nunca se falou sobre isso, nunca houve oferecimento, a gente não tinha como investir... Ninguém discute o que foi o Ronaldinho para o futebol mundial, mas o fato é que naquele momento ele já não era mais atleta de futebol. Nós não podíamos transformar o clube em um clube social. A princípio, em nenhum momento ele entrou em contato conosco e nós com ele. Eu não estou criticando ele. Estou dizendo que: a cogitação de Riquelme, Ronaldinho, que naquele momento não mais eram atletas, dava ao contexto uma imagem que nunca fez parte da nossa busca. Sempre fomos muito criteriosos. Nós não faríamos da Chapecoense um clube de ex-jogadores, com todo respeito a esses ex-jogadores, mas eles não mais eram atletas. Evidentemente, tivemos vários empresários oferecendo coisas: "Vou trazer tal jogador". Mas a gente é profissional, já na primeira frase, na primeira pergunta, vê as reais intenções.

Como será o desafio de montar o elenco para mais uma Libertadores?

Creio que a gente tem um desafio grande, que é primeiro manter os jogadores que nós temos, manter o grupo, que é bom. Depois, a intenção é fazer contratações que nos permitam agregar. Teremos um desafio grande a mais: dificilmente haverá clubes dispostos a pagar parte do salário de jogador. Isso não vai acontecer, porque estão nos vendo cada vez mais como concorrentes. Então chega de ajudar a Chape, chegando aí em oitavo lugar, indo longe, porque nós vamos ajudar? Estamos num mercado competitivo. E a nossa meta aqui é tornar cada vez mais a Chape num time que seja adversário. O que aconteceu aqui é eterno, mas a Chapecoense é um clube que participa de competições. Queremos um grupo ainda mais competitivo para 2018.

Quantos jogadores que estão emprestados deverão ir embora?

?Começamos o ano com 60% do elenco emprestado. Hoje, cerca de 20 jogadores são emprestados (aproximadamente 50%). Não significa que todos voltarão aos seus clubes. Em alguns casos temos opção de compra, outros estão ficando livres. Já temos 24, 23 atletas para o ano que vem, não vai ser a loucura de chegar aqui e ter dois atletas. Teremos a saída de 12, 13 jogadores, mas isso estava no planejamento, era absolutamente previsível. Agora, com o fim do campeonato, vamos continuar o processo de renovações. Devemos anunciar nos próximos dias a renovação de quatro atletas. Em 15 dias vamos começar a mostrar para o mercado que temos intenções para o ano que vem, dentro daquilo que é possível, da parte orçamentária. Há uma preocupação de manter o futebol forte, mas não se pode desconsiderar que ao longo dos próximos anos o clube terá demandas em decorrência do acidente, que implicarão na capacidade de caixa. Não vou entrar em detalhes sobre isso, mas é importante pontuar bem essa situação, que estará presente no clube por menos nos próximos cinco, seis anos. Não dá para achar que estaremos em águas tranquilas, que todo orçamento do clube será do futebol.

Reinaldo está retornando ao São Paulo?

?O Reinaldo é um jogador, que na minha avaliação e na de muita gente, se transformou em um do grandes laterais-esquerdos do Brasil hoje. Eu estaria sendo leviano e desleal com meu torcedor se eu dissesse que ele vai ficar. É improvável que fique. Temos a opção de compra até 31 de dezembro, mas o São Paulo já procurou o atleta para fazer um contrato que, evidentemente, é incompatível para nós. É um atleta que sempre deixou claro o carinho pela Chapecoense. Se fosse só pela emoção, ele ficaria. Mas ele é profissional, é jovem, tem 28 anos... Certamente é um jogador que volta para o São Paulo.

Moisés Ribeiro está com contrato no fim. Ele vai renovar?

O Moisés é um jogador que eu costumo brincar aqui, que é o nosso soldado de infantaria. É o primeiro a colocar o pé no campo, a se entregar pelos companheiros, e o último a sair. Ele entrega tudo o que ele tem, ele não deixa pra depois. Vou contar uma história: quando eu cheguei aqui, o Moisés vinha de recuperação de um rompimento de cruzado, tinha uma perna do tamanho do meu braço, havia uma insegurança muito grande. Levantou-se a possibilidade: faz um contrato de mais seis meses, até ele se recuperar. Eu sabia que ele tinha sido da base do Corinthians, e esses jogadores que têm base de Corinthians, São Paulo, Grêmio, Palmeiras merecem atenção. Então eu disse: "Vamos fazer um contrato de um ano com ele, porque eu quero ver esse atleta jogar". Ele se recuperou, jogou muitas vezes no sacrifício, um sacrifício planejado, porque você percebia nele a vontade de jogar e ajudar o clube. Ele era uma das pessoas que estava aqui em 2016 e só não faleceu porque estava lesionado. Ele é um jogador que queremos contar aqui. Diria que estamos muito próximos de anunciar a renovação do Moisés, e esse é um recado muito claro de que a nova Chapecoense, a Chapecoense que prossegue, ela respeita muito o passado, o presente e o futuro. O Moisés, por tudo o que fez aqui, representa bem isso. Ele retrata muito bem a filosofia do clube. No que depender de nós, ele ficará com a gente por alguns anos.

Os contratos do Neto e do Alan Ruschel terminam no próximo dia 31. Quais são os detalhes que ainda faltam para selar a renovação com eles?

Estamos tratando com muito carinho a situação do Neto e do Alan. São renovações muito importantes, por aspectos que transcendem o futebol. Estamos apresentando propostas para que eles sejam acompanhados e respeitados como atletas de futebol. Não há caridade. Estamos propondo contratos com o tamanho daquilo que eles representam para o clube, mas são contratos esportivos, para que eles possam ter metas e ser reconhecidos como jogadores profissionais. O Alan já está bem e o Neto certamente vai começar o ano muito bem, fazendo pré-temporada. Imagino que, nos próximos anos, a gente consiga fazer com eles um projeto de carreira dentro da Chapecoense.