Topo

A dura batalha contra a homofobia: LGBTs contam como driblam o preconceito nos estádios do Brasil

20/03/2018 08h00

Assim como o futebol ganha fãs todos os dias, gays, bissexuais, travestis e transexuais morrem em todo o mundo. Só no Brasil, 445 LGTBs foram assassinados em crimes motivados por homofobia no ano de 2017, o que representa uma vítima a cada 19 horas, de acordo com levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Reflexo da sociedade, a hostilidade também é comum nos estádios e o preconceito muitas vezes acaba ficando na cadeira de alguém que deixa de assistir aos jogos por medo.

Há duas semanas, o palmeirense William de Lucca, de 32 anos, presente em vitória do Palmeiras por 2 a 0 sobre o São Paulo, no Allianz Parque, virou assunto nas redes sociais por ter manifestado incômodo com reações homofóbicas de alguns alviverdes no estádio. William é gay, sentiu-se ofendido com cânticos entoados contra são-paulinos e manifestou-se pelo Twitter.

No último fim de semana, uma mãe se manifestou na mesma rede social sobre atos da torcida Independente, organizada do São Paulo, no estádio Anacleto Campanella, em São Cateano do Sul: "Meu filho tem 14 anos. Ama o SPFC. Estamos no Anacleto, próximos à torcida e a Independente mandou todos os moleques tirarem os brincos pra não pareceram viados e que ali era "torcida organizada". A molecada, com medo, tirou", desabafou.

Segundo a "Folha de S. Paulo", o Brasil é o sexto em ranking de países mais multados pela Fifa por homofobia. Só durante as eliminatórias para a Copa do Mundo, a CBF foi punida cinco vezes e teve que pagar R$ 336 mil à Federação. Para promover a inclusão do público LGBT, torcedores criaram movimentos no Facebook, como GaloQUEER, Palmeiras Livre, QUEERlorado, Bambi Tricolor, entre outras, mas falta apoio para levantarem a bandeira no estádio. Tamanha resistência de parte do público que frequenta partidas de futebol é entendida pelo sociólogo Maurício Murad como reflexo da formação cultural do país.

- A nossa formação cultural é muito patriarcal, conservadora e machista. O futebol é um fenômeno da paixão da multidão e a multidão apaixonada tende a exacerbar, acentuar tudo, para o bem e para o mal. Neste caso, é evidente que é para o mal, porque a homofobia reforça os piores sentimentos humanos e também o pior de nossa formação familiar, escolar e social como um todo - apontou.

Advogada e participante de movimentos e organizações de luta pelos direitos de igualdade, Luisa Stern é a primeira mulher trans a assumir uma cadeira na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Suplente com aproximadamente 500 votos nas últimas eleições, ela trabalhou durante os dias 7, 8 e 9 de março na vaga de um colega de legenda que tirou licença. Além da carreira política, Luisa é uma das criadoras da QUEERlorado, um movimento no Facebook formado por torcedores do Internacional que lutam contra todos os tipos de preconceito, algo que tem presença constante em sua vida.

- Já senti medo de ir ao estádio por ser trans. Eu fiz a minha transição com uma certa idade, então eu estava acostumada a ir aos jogos com identidade masculina e quando comecei a ficar com a aparência andrógena, tive depressão e parei de frequentar estádios por quase sete anos. Quando voltei, com uma aparência feminina, deixei de ser incomodada. Estou "passando batida" como qualquer outra mulher - contou.

Os clubes ainda investem pouco em campanhas de conscientização da torcida, mas os torcedores lutam diariamente para que o respeito na arquibancada não seja seletivo. O palmeirense William de Lucca fez um apelo para não chamarem a torcida do São Paulo de "bambi" e sofreu uma série de agressões verbais e ameaças por parte dos próprios admiradores do Verdão. Para Luisa, tais reações mostram que o público LGBT está longe de ser aceito nos estádios.

- Creio que ainda temos um longo caminho pela frente na luta por mais espaço. O caso recente do William de Lucca, que recebeu ameaças após pedir que a torcida parasse de chamar os rivais de "bambi", mostra o quanto a gente ainda precisa avançar neste ponto. Acredito que é por isso que esses grupos LGBT e Queer ainda não criaram coragem de se organizar e ir para o estádio, porque a reação pode ser muito dura com ofensas e agressões. Quando estamos sozinhas, até passamos batidas no meio da torcida, mas se um grupo levantar a bandeira, o risco de ser agredido é bem maior - comentou a militante.

Torcedor do Vasco, Sergio Manfredi, que é gay, explica que é necessário "não deixar a orientação sexual transparecer" e até agir como uma pessoa grosseira e rude para ter o respeito dos demais torcedores no estádio. Apesar de nunca ter sido agredido "por sorte", Sergio presenciou atos homofóbicos contra pessoas na arquibancada.

- Já vi uma torcedora sendo completamente humilhada na arquibancada. Como sempre, nada foi feito, porque não é somente uma pessoa que agride. Começa com um e quando você vê, um setor inteiro está participando de algo que, para eles, é brincadeira. É difícil você ver alguém dizer que é errado e quem acha errado acaba guardando para si por medo de também sofrer represálias.

É comum casais irem juntos ao estádio para acompanhar partidas de futebol, mas quando se trata de casais formados por LGBTs, há quem dê um passo para trás. Questionado se iria ao Beira-Rio acompanhado de um namorado, Walter de Souza, torcedor assíduo do Internacional, diz que sim, mas mantendo o perfil de "amigo".

- Nunca fui acompanhado porque nunca namorei sério, mas iria. Como sei que o público é meio resistente, a gente iria se tratar como amigo. Eu acho que jogo não é lugar para ficar "se pegando" independente de ser casal gay ou hétero. A gente vai lá para torcer e esse é o meu propósito.

No dia 28 de junho de 2017, data em que comemora-se o Orgulho LGBT+, clubes como Internacional, Grêmio, Bahia, Avaí, São José, além da Federação Mineira de Futebol (FMF) e o Mineirão homenagearam o público por meio de imagens postadas em suas plataformas digitais. No Rio de Janeiro, apenas o Flamengo se mostrou a favorável ao fim do preconceito e, seguindo os passos do clube, a Nação 12 foi a única organizada que exaltou a diversidade da torcida.

- Acreditamos que o amor pelo clube do coração se dê independente de cor, gênero, religião ou orientação sexual. Se a pessoa for apaixonada pelo MENGÃO, gostar de cantar o jogo todo, balançar a bandeira e respeite o próximo, ela tem exatamente o que procuramos num integrante - revelou Diego, um dos líderes da torcida organizada.

- Na Nação 12, ninguém, que seja do nosso conhecimento, defende que alguém sofra agressão por ser LGBT. Nesse caso, o integrante estaria totalmente passível de expulsão. Não queremos contar com pessoas convictamente intolerantes - disse o torcedor.

Na ocasião, a organizada suspendeu o canto de "vou descontrolado", que tem conotação homofóbica contra o Fluminense no trecho "Eu não sou viado, não sou Fluminense", e reiterou que "não faltam motivos para zoar o Tricolor", puxando a rivalidade para o histórico do clube em competições sem praticar atos preconceituosos.

- Estabelecemos no nosso Movimento a ideia de, além de apoiar e fazer festa para o Clube de Regatas do Flamengo, de também ter atitudes que possam contribuir positivamente para a sociedade. E numa dessas, essa discussão foi levantada e depois de certo tempo, autocríticas foram feitas e resolvemos rever a nossa postura nesse sentido. Porém, sempre deixando claro que rivalidade tem que ser incitada, mas por outros meios. Paramos com todas as canções que tenham esse conteúdo. Tentamos estimular à rivalidade por outros meios, em especial, ao que rolou dentro de campo - explica o rubro-negro Diego.

Apesar da chuva de críticas vindas de alguns torcedores, Flamengo e Nação 12 mantiveram seus posicionamentos. Antes, no Pará, a Banda Alma Celeste, organizada do Paysandu, aboliu o grito de "bicha" e estendeu a bandeira LGBT na arquibancada, se tornando a primeira torcida do país a manifestar apoio à causa dentro do estádio. Porém, a resposta não foi positiva.

Após o ato, no empate em 1 a 1 com o Luverdense, pela Série B de 2017, integrantes da Terror Bicolor fizeram represálias e agrediram membros grupo, o que resultou na denúncia do Paysandu, pelo STJD, por discriminação de gênero, sendo este o primeiro caso de denúncia por preconceito de orientação sexual no futebol brasileiro. O clube também foi indiciado no artigo 213 por não ter tomado providências para prevenir e reprimir desordem no estádio.

Ao L!, um torcedor assíduo do Paysandu garantiu que mesmo com os casos de violência registrados após a manifestação de apoio, "a quantidade de mulheres e LGBTs na torcida aumentou significativamente por se sentirem mais seguros". O clube ainda iniciou um projeto para banir cantos homofóbicos e, apesar de estar estagnado, membros do Papão afirmam à torcida que darão sequência aos planos.

Na arquibancada, a forma de preconceito que mais chama a atenção está nas músicas com conotação homofóbica presentes nos repertórios de grandes torcidas. Antes das ofensas aos torcedores, jogadores e árbitros são facilmente xingados, o que é considerado pela torcida parte da prática de torcer ou "brincadeira", como explica o antropólogo Wagner Camargo.

- Esse debate é longo. Mas penso que a normalidade instituída em piadas e brincadeiras vem, antes de tudo, de uma ideia de senso comum que encara serem tais gritos ou expressões como "produto do torcer", isto é, da banalidade desse sentimento de identificação com um clube, com um escudo ou com dado jogador. Isso não pode ser visto dessa forma. Qualquer piada ou brincadeira sobre a sexualidade de um jogador ou jogadora (um/uma atleta) não deixa de estar implicada numa rede de preconceitos, criados e instituídos historicamente - afirma o pesquisador, com pós-doutorado em antropologia social pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e que estuda a sexualidade e gênero nos esportes.

Entre os entrevistados, a resposta para a solução do problema é unânime: investimento dos grandes clubes em campanhas de conscientização para a torcida e maior interferência da segurança nos estádios quando testemunhar ou for acionada para registrar a ocorrência. Wagner Camargo acredita que a medida é a porta de entrada, mas acrescenta que ídolos do futebol também podem desempenhar papel importante na luta pelo fim da LGBTfobia nos estádios.

- A proposta seria interessante, inclusive se viesse atrelada a algum cumprimento obrigatório que o sócio-torcedor tiver que apresentar em relação ao clube. Ou algum outro mecanismo que possa solicitar, das Organizadas, por exemplo, uma responsabilidade perante atos LGBTfóbicos. Os jogadores de futebol também têm importância na campanha. Não é necessário que alguém como Cristiano Ronaldo chegue e diga que é gay e que então que "todos devam gostar de gays". Não se trata disso. Ou ainda que Neymar apareça fazendo discurso de inclusão de pessoas transgênero no esporte - explica Camargo.

O antropólogo acredita que as atitudes dos jogadores podem refletir no comportamento da torcida. Por conta disso, caso os clubes lancem propostas de conscientização com o apoio de ídolos do esporte, é necessário que estes saibam se portar para não causarem ainda mais atrito entre os torcedores favoráveis à causa e os que são resistentes quanto a presença de LGBTs nos estádios.

- Seria produtivo se tais figuras célebres não reforçassem preconceitos em suas vidas pessoais junto aos torcedores, não se pronunciassem de modo equivocado ou errôneo (por exemplo, dizendo que "tudo bem gays no esporte, desde que não cheguem perto de mim") e fossem em prol dos direitos humanos e da inclusão do diferente no futebol/nos esportes - o diferente passa pelo sexualmente dissonante, como também passa pelo corporalmente distinto (uma pessoa com deficiência, por exemplo).