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Intensidade, mutação e molecada: Jair Ventura conta como vê o futebol

Jair Ventura pretende ficar no Santos por muitos anos - Daniel Vorley/AGIF
Jair Ventura pretende ficar no Santos por muitos anos Imagem: Daniel Vorley/AGIF

05/04/2018 06h00

"Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". O trecho da música de Raul Seixas dá o tom do trabalho do técnico Jair Ventura, do Santos. Sem "tática de conforto", em entrevista exclusiva ao Lance!, o carioca de 39 anos se gaba de ser adaptável e justo em suas escolhas na carreira, sejam elas de clube ou de jogadores. Escolheu o Peixe depois de ver a insistência da diretoria alvinegra e os pedidos da torcida santista. E escolhe seus titulares jogo a jogo, baseado no melhor rendimento diário. Quem está bem, vai jogar. Assim será nesta quinta-feira, às 21h30, em Qulimes, na Argentina, contra o Estudiantes (ARG), pela terceira rodada da fase de grupos da Libertadores.

"A minha ideia de jogo é mutável, vai ser sempre em cima do que eu tenho. Eu não posso ter uma ideia fixa para todos os grupos que eu trabalhar, muito menos os clubes. As mudanças do meu elenco determinarão as mudanças de sistema, a maneira de jogar. Se eu estiver com quatro atacantes bem, vou entrar com quatro atacantes, como fiz contra o Palmeiras (nas quartas de final do Paulistão, no Pacaembu). Se eu tiver dois volantes que estão jogando muito bem, vou arranjar um espaço para ambos, como fiz no Botafogo, onde arranjei uma função ofensiva para o (volante) Bruno Silva, que se tornou o artilheiro do time. Em campo, estará o que tenho de melhor. Sempre", explica o técnico, de discurso sereno e coerente.

A volubilidade de Jair, formado em Educação Física, lhe assegurou o posto de hoje. Interessado em tática desde muito jovem, foi pescando um pouco de cada treinador que viu passar nos nove anos de Botafogo e se "auto-formou" como treinador. Fez cursos na CBF - o primeiro em 2005 -, foi analista de desempenho e, com bom trânsito no clube carioca, foi subindo de posto. Sem inspirações, embora diga que o trabalho de um ano e meio como treinador do elenco profissional do clube carioca se assemelhou ao de Diego Simeone, no Atlético de Madrid (ESP), caminha com base no trabalho e na fé. É devoto de Nossa Senhora de Aparecida.

No Santos, time no qual espera ficar por muitos anos e pretende deixar um legado, promete sempre tentar "jogar para frente, como rege a filosofia do clube, com os meninos, que tanto gosta, e vencer, como a torcida espera". Entenda nas linhas abaixo como Jair Ventura enxerga o futebol e como quer trabalhar com os Meninos da Vila, com os quais conversa até sobre namoradas, para se firmar entre os técnicos campeões do Alvinegro.

O que te trouxe ao Santos foi planejamento de carreira ou na sua vida as coisas foram acontecendo?

Planejamento de carreira. Porque eu gosto de um trabalho a longo prazo. Aí você me pergunta por que eu sai do Botafogo, então. Mas eu te digo que tinha nove anos de Botafogo. Como treinador, tinha um ano e meio, mas de clube nove anos. Apareceu uma grande oportunidade de trabalhar num clube como o Santos e também de trabalhar em São Paulo, eu tinha vontade, como é bom trabalhar aqui, é importante para o profissional passar em São Paulo. Junto o útil ao agradável. O esforço que foi feito pelo Peres em me tirar do Botafogo me estimulou mais ainda. Acompanho as redes sociais, a torcida falando no meu nome, não podia perder essa oportunidade. Espero fazer minha carreira e ficar muitos anos por aqui também.

Muitos te apontavam como um técnico defensivo no Botafogo, mas, pelo que você já disse, isso acontecia pois eram as melhores peças do elenco. É isso?

Sim. No Botafogo, o melhor que eu tinha era defensivo. Aqui, eu tenho atacantes e vou jogar com eles. Tem jogo que jogamos com um volante só. Mudamos. Já jogamos no 4-4-2, no 4-1-4-1, 4-2-3-1 e no 4-2-4 e essas mudanças são de acordo com o momento bom de cada jogador. Como eu vou tirar um cara que está num bom momento e botar outro só para satisfazer um esquema de conforto? Eu não tenho esse esquema de conforto. Na base, antes de chegar ao profissional, eu joguei muito no 4-2-3-1. Quando eu cheguei no profissional, no Botafogo, eu não tinha jogadores com essas características, tinha dois atacantes de velocidade, Pimpão e Guilherme. Se eu começasse com os dois, eu não conseguia mudar. Se eu estivesse perdendo o jogo de 2 a 0, iria fazer o que? Colocar volantes, zagueiros? De vez em quando, pelo elenco, você fica amarrado a fazer algumas variações. Não é questão de qualidade, é falta do quantitativo para fazer o que gosta, o que pretende. O Jair do Santos não vai ser o Jair do Botafogo, não vai ser o Jair do XV de Piracicaba e por aí vai. Vai ser o Jair do que o elenco tiver para me dar. Eu vou trabalhar com o que tiver em mãos e, lógico, respeitando uma filosofia de trabalho do clube.

Do que seu time não abre mão?

Eu não abro mão de um time organizado, de um time competitivo, isso pode sim acontecer em qualquer equipe. Todo mundo pode se doar ao máximo, se entregar, é uma questão de intensidade, de deixar o melhor dentro de campo. Isso eu não abro mão, pois isso indefere do sistema de jogo. Lógico que dentro do jogo temos alguns princípios, algumas coisas que a gente faz, algo de se preocupar em todos os momentos do jogo, em todos os terços do campo. Em cada momento do jogo, temos uma maneira de se comportar. Isso aí já é mais detalhado e vou dar o meu segredo aos rivais.

No Santos, sente que tem uma responsabilidade maior do que tática e técnica com os jogadores, já que a maioria é muito jovem?

Eu quero deixar um legado, quero de alguma maneira poder contribuir na vida particular deles. Eu converso com eles sobre tudo. Estudo, namorada, contrato, objetivo de carreira, planos, o que eles querem, o que pretendem. É gostoso essa parte de ajudar. Consequência do trabalho, falo e faço sim bastante.

Você diz que seu Botafogo se assemelhava ao trabalho de Diego Simeone, no Atlético de Madrid. Ele é sua inspiração?

Não tenho inspiração em nenhum técnico. Eu tive a sorte de trabalhar com muitos técnicos no Botafogo. Mesmo antes de me tornar treinador, eu não tinha algum que me inspirasse. Eu falei do Simeone porque o modelo do Botafogo o modelo de jogo era similar. Tínhamos um elenco com poucas opções e conseguíamos vencer outras equipes com mais opções pelo jogo coletivo. Éramos competitivos, como o Simeone vencia Real e Barça. Sem tirar o mérito do (Zinedine) Zidane (técnico do Real Madrid), que vai ter o Cristiano Ronaldo para resolver muitos jogos para ele. Se o treinador dormir no banco de reservas, mesmo assim ele vai lá e ganha o jogo para você. No jogo coletivo, o Simeone manda bem. Hoje temos um cara assim na Seleção Brasileira que é o Tite. Time muito bem organizado, sem perder os valores individuais, como é o caso do Neymar. Então tem espaço para ser organizado, tático e dar espaço para seus valores individuais.

Você fez algumas mudanças significativas no time. Tirou por um tempo o Renato, por exemplo, testou novos esquemas... Como trabalha com o grupo?

É tudo de acordo com a performance. O Renato perdeu a titularidade e recuperou depois. Eles vão oscilando e nós vamos mudando o time. Eu não posso morrer abraçado como aquele jogador que não está no melhor momento, porque isso, como gestão, também influencia. Os jogadores estão vendo. Se for pedir para eles montarem um time, todos vão se colocar como titulares, mas, na verdade, eles sabem o melhor momento de cada um. Com isso, você sendo honesto, leal, você ganha o grupo. Como você ganha o grupo sendo tão jovem? Sendo honesto, falando a verdade e olhando no olho. Explico porque cada um vai jogar. Eu falo o que cada um precisa melhorar.

Já descobriu se Rodrygo é um camisa 7 ou um camisa 17, como você brincava? Como gerenciar um talento como o dele?

Ele hoje está jogando, então hoje é um 7 (risos). Espero que ele continue como um 7 ou que algum de seus companheiros possam ser o 7 e ele 17. Rodrygo foi entrando na equipe. Mas com ele é preciso ter a calma, fazer ele sustentar a intensidade durante os 90 minutos. É diferente quando entra com o time já jogando. No fim, o jogo fica mais bagunçado, a intensidade é menor. Vamos lançando pouco a pouco, isso, modéstia à parte, o treinador precisa saber. Temos de resistir nas nossas convicções. Por isso, eu escolhi ser treinador. Vou nas minhas convicções. Quando eu deito a cabeça no travesseiro, está tranquila. Eu faço o que tenho de fazer e não o que as pessoas querem que eu faço, porque aí eu não seria treinador, seria o entregador de coletes.

*Nota: Para Jair, camisa 7 é o que sustenta 90 minutos de bom futebol, é o titular. Já o camisa 17 é o jogador que entre no segundo tempo para "incendiar" o jogo

Se sente pressionado a escalar um time ofensivo, já que você dizer querer sempre atuar de acordo com a filosofia do clube?

Não. Eu me sinto um privilegiado em poder usar tantos jovens como eu gosto. E não ter esse peso. Os meninos aqui entram mais leves. Eu lancei o Ezequiel no Botafogo e ele fez gol no Cruzeiro no último jogo meu lá e você vê que o garoto fica com o peso, sente um pouco. Aqui não. Você vê que os meninos estão tranquilos, é mais fácil se adaptar ao profissional, a jogar, a titularidade, a decidir. Isso é bom, ótimo, benéfico. Não vejo como pressão. Ser um time ofensivo é ser o que o Santos sempre foi, eu não preciso fazer nada diferente. Só estou dando sequência a algo que o clube faz há anos.

Você ainda não achou o meia-armador que tanto quer, nem no elenco e nem em algum reforço. Ninguém foi contratado para a posição. Mesmo assim, você disse que não fará 'mimimi' por contratações. Como pretende trabalhar?

Quando você inventa, fica sujeito a críticas. Contra o Palmeiras, optei por quatro atacantes, com média de 20 anos de idade. É complicado, mas é aquilo que falei lá atrás, tem de assumir as responsabilidades. Estamos procurando. Falam em conjunto, mas o conjunto tem que se dar com aquilo de melhor no momento, vou buscar até achar alternativas. Estamos buscando, todos tiveram chances, eu brinco com eles que preciso de alguém para segurar a camisa 10. É aquela história de expectativa versus realidade. Todo treinador do mundo vai querer reforços. O Cuca voltou para o Palmeiras, em maio de 2017, dizendo que queria cinco ou seis reforços para um time que tem seis times dentro do elenco. Temos uma realidade no clube, o presidente e o Departamento de Futebol estão fazendo um esforço. Não adianta eu ficar aqui pedindo, pedindo... Eu tenho que usar o que tem dentro. Temos de arrumar alternativas. Tem que usar os meninos, ser ofensivo e vencer. Só isso (risos). É a vida do treinador.

Qual foi sua melhor surpresa no Santos?

A resposta do grupo comigo. Sério. Foi a resposta do grupo comigo. Se eu chego aqui e vejo que eles não estão comigo, não vai dar certo. Mas foi rápido, a entrega, a situação de apostar nas nossas ideias. Então isso para mim foi a melhor coisa. Posso perder o emprego, mas esse grupo vou estar com eles daqui a dois ou três anos em algum lugar. Posso perder o emprego, mas não o grupo. Eu posso ter críticas contra o meu trabalho, é normal, mas contra minha pessoa não. Posso perder meu trabalho no Santos, mas não posso perder meu grupo, minha essência, meu caráter. É preciso ser leal, justo.

Contra o Palmeiras, você optou pela entrada do Leandro Donizete no lugar do Renato, que estava exausto. Mas no banco você tinha também o volante Guilherme Nunes. Por que optou pelo jogador constatado por boa parte da torcida e até então nunca usado por você?

Momento do jogo pedia um jogador com característica do Donizete. Um jogador mais forte, de guardar a posição. Apesar de primeiro volante, o Guilherme ele é leve então quando você vê ele já está na área. O momento do jogo pedia alguém para ficar mais defensivo. Vai ter jogos que isso vai mudar. Não posso pensar no que as pessoas vão pensar a respeito do cara. Se o cara está aqui, eu vou usar.

Como você faz para os jogadores aplicarem seus métodos em campo? Quanto tempo isso demanda?

Utopia falar em tempo e excelência. Varia de acordo com a resposta do clube. Usei 31 jogadores (durante a primeira fase do Paulistão) pois precisava saber quem eu tenho. Meu aproveitamento é de 48% e não é bom esse número, mas os objetivos foram alcançados pouco a pouco. Eu tinha duas rodadas para testar. Se eu precisasse classificar, não iria fazer os testes, nos demos esse luxo para oportunizar. Nós vencemos o Palmeiras, jogamos de igual para igual. Demos um passo à frente mesmo com tantas mudanças. O time do Santos hoje, considerado o titular, tem dois jogadores do ano passado. O David Braz e o Lucas Veríssimo. É outra equipe. Bruno Henrique era referência e não está jogando. Perdemos Ricardo Oliveira e Lucas Lima, é outro momento e isso requer um tempo. Não sei qual o tempo ideal, mas temos evolução e melhora com tantos jovens.

Por isso tantos treinos fechados à imprensa?

Eu preciso fechar os treinos pelo adversário, muda muito. Eu tenho uma história legal, que me fortalece em fazer isso. Em um curso na CBF agora, com o Fábio Carille (técnico do Corinthians), cada um apresentava um trabalho. O Carille estava apresentando o dele e disse: 'Inclusive, quando eu fui jogar contra o Botafogo, eu fui pego de surpresa, porque o Jair mudou o time. Se eu soubesse o time, eu teria mudado minha maneira de jogar'. Aí eu falei: 'É por isso que eu fecho o treino e você deixa aberto'. E todo mundo riu bastante, agora também ele começou a fechar... Naquele dia, fomos com o time todo alternativo porque eu tinha jogo da Libertadores e aquilo surpreendeu o Carille. Muda demais para nós.

Você tem algum mantra? Se considera um cara bitolado por trabalho?

Eu sou bitolado, sim. Tem horas que minha esposa está falando comigo e eu solto um "hã?" e ela já ri e diz que sabe que estou pensando em trabalho. O treinador de uma equipe grande como o Santos trabalha 24 horas. Cinema, jantar, você fica meio aéreo... Do nada, vou no bloco de notas e anoto uma jogada, já mando para os analistas de desempenho que preciso de tal lance, preciso corrigir isso ou aquilo. Se você não pegar, você perde. Eu tô vendo um jogo e já vem... Mantra não tenho. Nada assim absurdo como uma calça roxa ou algo do tipo (risos). Eu gosto de rezar, sou um cara religioso, católico. Devoto de Nossa Senhora de Aparecida. Trabelhei com o Cuca, mas nada assim, não (risos). Aposto na fé e muito no trabalho.

Se entre você e o elenco está tudo bem, politicamente o Santos vive um momento ainda conturbado. Isso atrapalha?

O treinador já tem muita dor de cabeça. Eu brinco que a gente pode ir até a página dois ou três. É uma situação que foge da minha alçada, a gente tenta se blindar disso, não temos muito acesso às situações extra-campo. Mudança de gestão é normal. É a história de trocar o pneu com o carro andando. De vez em quando, o carro vai balançar, mas temos de seguir. Caso as coisas não aconteçam no futebol, isso não vai ser motivo para segurarem minha cabeça. Então, a gente vai deixando os problemas de lado. Vamos tocando o futebol da melhor maneira possível.

Por fim, a pergunta clássica: prefere jogar no Pacaembu ou na Vila Belmiro?

Essa resposta eu já tinha antes de chegar para a entrevista (risos). O Santos é um privilegiado, nós temos duas casas.