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Força, Xavante! Brasil de Pelotas lida com cicatrizes dez anos após tragédia

16/01/2019 07h50

As marcas continuam na pele da torcida xavante. Mas a confiança de que o Brasil de Pelotas soube superar as intempéries causadas pelo desastre com o ônibus do clube, no dia 15 de janeiro de 2009, é cada vez mais latente aos olhos de quem lidou com aquela fatídica situação:

- O clube conseguiu curar cicatrizes, atingindo o patamar de estar na elite do Campeonato Gaúcho e conseguindo chegar a uma Série B. Lamentavelmente, nossas marcas permanecem. Mas é bom ver que o clube se reergueu e foi além do que nós tínhamos planejado lá atrás - afirmou Helder Lopes, presidente do Brasil de Pelotas naquele ano, ao LANCE!.

A delegação do Xavante voltava de um amistoso contra o Santa Cruz quando, na altura de Canguçu (RS), o motorista perdeu o controle do ônibus. O veículo capotou de um barranco em torno de 40 a 50 metros. O ídolo de artilheiro do time Cláudio Millar, o zagueiro Régis e o preparador de goleiros Giovani Guimarães morreram, enquanto 28 pessoas ficaram feridas.

- A gente estava num clima de alegria, tinha ganho o jogo. Vínhamos tomando chimarrão, jogando cartas. Aí, numa fração de segundos, aconteceu aquilo tudo. Era uma coisa muito triste - relembrou o ex-zagueiro Alex Martins, que não escondeu a importância do atacante Cláudio Millar e de Régis, seu então colega de zaga:

- Eram pilares do time, estavam em grande momento. Nós estávamos com um time bom, fazendo pré-temporada. De repente, tinham muitos jogadores feridos.

Médico do Xavante em 2009, André Guerreiro detalhou o cenário com o qual se deparou ao chegar na região do acidente. Na noite daquela quinta-feira, ele não viajara com o clube, porque era seu dia de fazer cirurgias em um hospital em Pelotas:

- Quando chegamos, avaliamos um por um para ver quem precisava ser submetido a uma cirurgia com urgência. O (técnico) Armando Desessards teve uma fratura na coluna. O Edu, que foi ejetado do ônibus e ferido por um galho de árvore, o Paulo Roberto, que teve um corte na região de trás... Pessoas com dores até o joelho. Além, é claro, de problemas emocionais que afetaram vários jogadores.

Mais do que nunca, o o elenco do Brasil de Pelotas teria de ser forte como os xavantes.

DESAFIO DE SUPERAR TRAUMAS PARA DISPUTAR O GAUCHÃO

A tragédia custou um desafio e tanto ao Brasil de Pelotas. Mesmo lidando com o abalo da morte de três integrantes da delegação e com tantos atletas feridos, o clube aceitou disputar o Gauchão.

- Acredito que tomei uma decisão correta. Tínhamos de pensar no lado humano, de acolher as famílias das vítimas da tragédia e dos demais feridos que defendiam as cores do nosso clube. Caso tomássemos a decisão de não disputar, seríamos punidos com a queda para a Terceira Divisão e arcaríamos com as consequências de não honrar nossos compromissos - garantiu o ex-presidente Helder Lopes.

O Xavante retornou aos treinos em 21 de janeiro e, dias depois, a Federação Gaúcha de Futebol (FGF) anunciou uma tabela à parte bem "puxada" no Primeiro Turno, com jogos de dois em dois dias (oito jogos em 16 dias). O médico André Guerreiro contou como foi a luta para ajustar a equipe:

- Metade do time era formada por jogadores profissionais e a outra, por amadores. Além disto, os profissionais atuavam muito no sacrifício, alguns até com ferimentos. Teve jogador que tinha ainda resto de caco de vidro na cabeça!

Guerreiro ainda detalhou como o departamento médico tratava a liberação de jogadores a cada partida:

- A gente ia à casa de cada jogador para saber como estava. Liberávamos quem estivesse em uma condição mais favorável.

Outro desafio para o Brasil de Pelotas era atuar como visitante. De acordo com o zagueiro Eliandro, era uma luta enfrentar viagens de ônibus durante o Gauchão:

- Causava muita apreensão na gente cada viagem, por tudo o que passamos na viagem. Mas jogávamos, muito, pelos amigos e também pelos que partiram. Ia para campo quem tinha condições.

Helder Lopes reconhece os problemas pelos quais os jogadores xavantes passaram em campo:

- Teve lateral que jogou com fissura na bacia. Os jogadores se empenharam muito. Era tudo muito difícil, mas tenho muito orgulho deles.

Além disto, não pôde contar com jogadores lesionados. Odair (volante e atualmente Odair Hellmann, treinador do Internacional) e Alemão foram alguns dos desfalques.

Com tantos percalços, o Brasil-RS caiu com três rodadas de antecedência para a Divisão de Acesso do Gaúcho. Mas "resgatou" suas origens de maneira fulminante. Voltou à elite gaúcha em 2013, subiu à Série C em 2014 e obteve o acesso à Série B em 2015.

HISTÓRIAS E SEQUELAS DE UMA DOLOROSA NOITE

Algumas cenas que antecederam o fatídico acidente de 15 de janeiro ainda afetam jogadores que faziam parte da delegação do Brasil de Pelotas. De acordo com com Alex Martins, ele e seu colega de zaga, Régis, faziam um trato quanto a viagens de ônibus.

- A gente era colega de viagens e de concentração. Quando íamos de ônibus, a gente definia que ele sempre ia na janela e eu ia no corredor na ida. Já na volta, a gente trocava.

Porém, no retorno do amistoso contra o Santa Cruz, houve uma "teimosia" de Régis:

- Neste dia do acidente, ele foi (sentado) na janela. E como era a volta do jogo, era minha vez de ir para lá. Mas ele foi, bateu o pé, tentei puxar ele à força, de sacanagem, mas ele se agarrou. Eu até brinquei com ele e falei: "no outro dia, eu vou na ida e na volta (da viagem)" - afirmou o ex-jogador, que hoje é proprietário de uma academia de hidroginástica.

Horas depois, Régis foi uma das vítimas do acidente de ônibus do Brasil de Pelotas.

Já Alemão lida até hoje com sequelas na tragédia. O ex-lateral-esquerdo, que tem passagens pelo São Paulo e Coritiba e pelo futebol árabe, contou sua luta no ano de 2009, quando tinha 27 anos:

- Tive três a quatro fraturas de úmero no braço esquerdo. Corri o risco de perder o braço, que hoje é mais curto do que o outro e não tem alguns movimentos. Mas agradeço por estar vivo. Fiquei um ano parado, estava prestes a jogar no Internacional. Depois, fui lutando muito, passei por vários clubes até chegar no futebol árabe. Foi quando o Nilmar me ajudou muito a me adaptar lá - disse Alemão, que hoje tem uma escolinha de futebol nos Estados Unidos.

ACIDENTE ABREVIA TRAJETÓRIAS NO GRAMADO

A comoção em torno do acidente fez dois jogadores mudarem suas trajetórias no futebol. O volante Odair e o zagueiro Eliandro decidiram pendurar as chuteiras.

Hoje técnico do Internacional, Odair Hellmann contou o quanto pesou para sua decisão aquela noite:

- Total! Eu tinha um projeto de vida de, quando eu estivesse com 38, ou 39, parasse de jogar e começasse a treinar categorias de base. Mas surgiu esta oportunidade.

O ex-volante (que tinha 32 anos quando parou) não mediu palavras ao falar sobre suas memórias do acidente:

- É muito difícil. Perdemos nossos amigos, temos alguns que passam dificuldade até hoje. Mas temos de saber levar em frente e tirar força desta situação.

Já Eliandro, que hoje trabalha com uma empresa de móveis no Paraná. deixou de lado o futebol bem mais jovem:

- Eu tinha 24 anos. Estava perto do Claudio Millar, conversando com ele depois do jogo. A gente estava muito otimista. Era a quinta vitória em cinco jogos. Quase não tive sequelas do acidente, por isto vivi muito daquela noite, vi o ônibus virando. Aí, cada barulho nas viagens que fiz no Gauchão, ficava assustado. Era muito difícil.

O ex-zagueiro contou que a situação pela qual passou no Xavante pesou para outras propostas no futebol:

- Recebi umas duas ou três propostas, mas sempre queriam fazer contrato de risco. Eu tinha de provar que estava realmente bem depois de tudo o que passei no decorrer do acidente. Depois de tudo que passei, fiquei muito infeliz e decidi ir para outro caminho.

ESTRUTURANDO-SE MAIS PARA A SÉRIE B: A NOVA LUTA DO XAVANTE

Passados dez anos, o Brasil-RS parte para novas batalhas. Com uma nova disputa da Série B no horizonte, o atual objetivo é fortalecer a estrutura do clube:

- Como partimos para o quinto ano da Série B, o Brasil-RS agora está fortalecendo uma estrutura de Série B. Estamos construindo um estádio novo, dando mais condições de campo, para que o clube consiga competir de igual para igual com qualquer outro adversário - disse o diretor executivo, Carlos Kila.

Segundo o dirigente, a reação em campo fez a torcida do Xavante se tornar mais exigente:

- A gente sabe que o Brasil-RS tem uma torcida ferrenha e aumentou sua exigência com a passagem dos anos, em especial porque fomos finalistas do Gauchão no ano passado. Mas nossa prioridade neste ano é ir bem na Série B. Formamos um elenco forte mesmo com a concorrência de outros clubes de ponta, trouxemos jogadores de qualidade, como é o caso do Bruno Aguiar e vamos lutar bastante.

O técnico Paulo Roberto Santos crê que o Brasil de Pelotas soube fazer do acidente um divisor de águas:

- O Brasil-RS vem se estruturando e surpreendendo a cada ano. Dando estrutura para que os jogadores e a comissão técnica cresçam. A sensação que dá é de que o clube soube tornar este episódio um início de renascimento.

Ao falar sobre sua perspectiva para a temporada, o treinador garantiu:

- Tudo é questão de trabalho. Não se conquista nada sem um bom planejamento. Contando com a diretoria e comissão técnica juntos, a gente tem chance de ter um percentual de acerto bem maior.

O Brasil de Pelotas estreia neste sábado, às 19h, contra o Caxias. Esquecendo as cicatrizes, os xavantes partem para novos rumos.