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Embaixo de igreja, lutador treina para UFC inédito longe de badalação

Iuri Marajó, lutador do UFC, vive com a família em Belém e vai lutar em casa - Adriano Wilkson/UOL
Iuri Marajó, lutador do UFC, vive com a família em Belém e vai lutar em casa Imagem: Adriano Wilkson/UOL

Adriano Wilkson

Do UOL, em Belém

02/02/2018 11h20

Um pastor evangélico exalta o nome Deus e exorta seu rebanho a fazer o mesmo enquanto o carro de Iuri Marajó estaciona na frente da academia que leva seu nome, em um bairro da periferia de Belém.

Em um galpão apertado no qual foi instalado um balcão de atendimento, um tatame e um ventilador de parede, funciona a Marajó Brothers, cujo escudo pintado no portão mostra dois homens se atracando em um movimento da luta marajoara

Ao lado, uma escada apertada leva à sobreloja, onde a pregação do pastor escapa pelas janelas. Iuri Marajó cumprimenta duas garotas recém-chegadas à adolescência, que apertam a faixa para prender o quimono e entram no tatame atrás de seu professor. Durante a próxima hora, elas e uma dúzia de meninos e meninas vão repetir movimentos de jiu-jitsu sob a supervisão de Iuri e de outro mestre.

No fundo do tatame, Iuri veste uma calça de motoqueiro e se prepara para treinar.

Marajó Brothers - Adriano Wilkson/UOL - Adriano Wilkson/UOL
Imagem: Adriano Wilkson/UOL

Trata-se de uma quarta-feira normal, uma noite úmida e calorenta, exceto pelo fato de que dali a três dias, Iuri entrará no octógono do UFC Belém, o primeiro o evento da maior organização de MMA do mundo no Norte do Brasil. Será também a primeira vez em sete anos que ele lutará em casa.

A roda gigante do UFC não levanta todos os lutadores.

Em muitos sentidos, a organização americana se assemelha a um circo cuja passagem por cidades pacatas imediatamente vira o grande assunto das rodas de conversa, atiçando a curiosidade da população.

Veja o caso de Lyoto Machida, o grande astro da turnê amazônica do UFC, que está em todas as telas de TV e na boca de todas as pessoas. Tratado como um herói local, foi recebido por centenas de fãs em um shopping da cidade, dançou carimbó, fez movimentos de caratê e prometeu dar um espetáculo a quem pagasse ingresso para vê-lo lutar contra o americano Eryk Anders no sábado.

Mas o espetáculo também é feito por gente absolutamente desconhecida, contratada para preparar o terreno para a exibição dos astros. Longe do hotel de luxo no qual o UFC hospeda seus funcionários, Iuri Marajó me recebeu em seu modesto apartamento em um prédio baixo, sem porteiro, no qual ele vive com a esposa e um dos filhos.

Miesha - Adriano Wilkson/UOL - Adriano Wilkson/UOL
Imagem: Adriano Wilkson/UOL

De chinelo, ele senta-se no sofá e afaga Miesha, uma bulldog francesa de olhos vermelhos e fascinada por estranhos. Nascido no Marajó, uma ilha do tamanha da Suíça banhada por um rio e pelo oceano Atlântico, o lutador tem no rosto traços típicos do caboclo amazônico, uma mistura de índio, negro e branco encontrada apenas nessa região do Brasil.

Sua prosódia fica ainda mais carregada de sotaque paraense à medida que ele começa a descrever o começo de sua carreira, seus primeiros passos na luta marajoara, sua passagem para o jiu-jitsu, seus anos como militar da Aeronáutica.

Ele interrompe a entrevista para aumentar o volume da televisão e assistir à reportagem sobre o UFC na cidade, que trata na verdade apenas de Lyoto Machida. Nem uma palavra sobre Iuri Marajó. Ele está acostumado.

A luta marajoara era uma tradição antiquíssima herdada talvez da civilização que viveu na ilha até o século 14, e Iuri, assim como a maioria dos garotos que nasceram lá, começou a praticá-la logo ao dar os primeiros passos. Foi a luta que o tirou do anonimato pela primeira vez.

Trata-se de um jogo de agarre em que o objetivo é colocar as costas do adversário no chão. Socos, chutes, torções e chaves de braço ou de perna são proibidos. Iuri costumava rodar pela ilha desafiando outros lutadores e, ainda adolescente, passou a ser reconhecido como um campeão.

Daí para o jiu-jitsu foi um passo. E de lá ao MMA foi outro.? No UFC desde 2011, ele nunca fez o tipo falastrão e nunca se deslumbrou, nem nas duas vezes em que foi eleito “a performance da noite” e ganhou um bônus da companhia.

Prefere evitar a muvuca do hotel onde os demais lutadores se reúnem. Quer evitar contato com seu adversário. “Tem cara que fica de gracinha, e eu não curto isso”, ele informa, enquanto Miesha se acomoda a seus pés.

No canto da sala, vasos contêm apenas terra revolvida pelas raízes de plantas arrancadas pela cadela. Um ventilador ligado no máximo espanta o calor e os mosquitos amazônicos. A geladeira guarda quilos de turu, um molusco de aparência verminosa que o povo do Marajó come na falta de carne. “É o viagra do Pará!”, garante a esposa Adrianne, doutoranda em biologia na universidade federal local. A estante exibe modestos porta-retratos, souvenires de viagens ao exterior e uma placa com a lei máxima da família Marajó:

“É proibido ter pensamentos negativos.”

Sem pensamentos negativos na cabeça, Iuri Marajó pega a chave do carro e se dirige à academia de lutas. No caminho, deixa Adrianne na malhação. O casal vive da bolsa de estudos dela e da bolsa de lutas dele. O filho Ian, que vai treinar com o pai, leva um pacote de macarrão para ser trocado por um ingresso para a pesagem oficial do UFC.

Na academia, o atleta do UFC promete a uma das alunas garantir-lhe um quimono novo. A maioria dos alunos ganharam quimonos do professor, que usa o dinheiro das lutas para pagar o aluguel do galpão e o equipamento dos alunos, que não arcam com mensalidade. Alguns vieram do interior para tentar a vida na capital e dormem em um quartinho nos fundos do galpão. Outros dormem no próprio tatame.

Marajó - Adriano Wilkson/UOL - Adriano Wilkson/UOL
Imagem: Adriano Wilkson/UOL

Iuri diz que se realiza com o sucesso dos pupilos, mesmo que esse sucesso seja apenas ficar longe da “vida na rua”.

O lutador não pretende sair mais de Belém, a não ser para ir ao Marajó, que fica a três horas de lancha da capital. Aqui ele tem seus amigos, seus alunos e sua família por perto. Por causa das 17 lutas que já fez no UFC, Iuri conheceu o mundo, um sonho que ele tinha quando criança. Agora, quando o mundo do UFC volta os olhos para o quintal de sua casa, ele começa a pensar que talvez já tenha tido o suficiente.  

“Depois da minha última luta [derrota por decisão para Alejandro Perez, em dezembro], eu percebi que me sinto cansado demais para continuar fazendo isso”, disse ele, aos 37 anos, em um tímido desabafo.

“Mas foi só eu saber que finalmente ia poder voltar a lutar em casa que a empolgação voltou outra vez. A nossa vida é isso.”

Iuri Marajó enfrenta o americano Joe Soto no card preliminar (no sábado, a partir das 22h de Brasília) do UFC Belém.