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Mulher trans x homem cis: o que evento de Manaus quer provar com esta luta?

Polêmica: Anne Veriato vai enfrentar um lutador homem na estreia no MMA - Winnetou Almeida
Polêmica: Anne Veriato vai enfrentar um lutador homem na estreia no MMA Imagem: Winnetou Almeida

José Edgar de Matos

Do UOL, em São Paulo (SP)

22/02/2018 04h00

“Ela não deixa de ser um homem, irmão. Ela é homem. Acho justo colocar homem contra homem. Isso é justo, entendeu?”

A frase acima é de autoria de Samir Nadaf, promotor do Mr. Cage, evento de MMA que vai casar a polêmica luta entre a atleta transexual Anne Veriato (21 anos) e Railson Paixão (18), estreante em um combate profissional das artes marciais mistas. No próximo dia 10, em Manaus, Anne, que diz ter iniciado o processo de mudança de sexo há quase uma década, terá pela frente um homem, em embate criticado por médicos e desconhecido pela Comissão Atlética Brasileira da modalidade.

Além de dono do evento, Samir Nadaf empresaria a própria Anne Veriato. Em conversa com a reportagem do UOL Esporte, ele explicou o porquê de colocar uma mulher transexual diante de um homem cisgênero no cage. Sem consultar médicos e especialistas para promover o polêmico embate, o empresário se apegou às próprias convicções e ao desejo da lutadora da categoria peso palha (até 52 kg).

“Acho justo colocar homem contra homem. Ela tem a força de um homem, mesmo se tirou o pênis. Se ela quer lutar MMA e nasceu homem, vai ter que lutar contra homem. Isso é o certo. Não deixa de ser homem, irmão. Ela é homem, nasceu homem”, comentou Nadaf, mesmo questionado sobre o tratamento hormonal feito pela atleta.

Anne Veriato começou a tomar hormônios femininos aos 12 anos e sob acompanhamento médico, segundo a própria contou à reportagem. Prestes a estrear nas artes marciais mistas após consolidada carreira local no jiu-jitsu, a atleta praticamente repetiu o discurso do promotor de evento e enxergaria injustiça se competisse com pessoas do gênero com o qual se identifica.

“Eu me identifico como mulher. Não acho injusto lutar contra o homem, mesmo passando por este tratamento com hormônios femininos. Desde a minha infância, sempre competi contra homens e ganhei. Meu treino é pesado e com homens. Sei que posso ganhar se treinar bastante. Seria injusto se lutasse contra mulher, meu nível é acima”, afirmou, apoiada pelo empresário que a colocará diante de um homem.

“Acho uma covardia homem que bate em mulher. Ela é um homem e tem pênis; pensa em fazer a cirurgia um dia. Mesmo quando tirar, disse que quer continuar lutando contra homem. Vai lutar com cabelo de mulher, roupa de mulher, unha pintada e maquiada; enfim, vai lutar como mulher, mas vai sair na porrada com homem”, sentenciou Samir Nadaf.

A ideia do organizador de provar que a lutadora transexual possui mesma capacidade física de um homem é reiterada pelo adversário de Anne. Railson Paixão contou à reportagem que não será o primeiro encontro com Anne, com quem treinou recentemente.

"Fui lutar um evento amador em Manaus e treinamos juntos. Ela tem muita força, não mudou nada ela ser trans. Estava lá para perder peso e ela também. O mestre dela falou para fazer defesa de queda com ela. Ela tem força de um homem normal", assegurou o jovem.

"Acho que não tem nada a ver o fato de ela ser trans. Não levo vantagem, ela tem a mesma força de um homem normal. É chegar lá em cima do octógono e só um vai sair vencedor, espero que seja eu. Estou confiante e vou para cima (...). Vou lutar com um homem, nasceu homem, está tudo tranquilo na mente", discursou o adversário de Anne.

Evento não é regularizado

Anne Veriato lutadora trans - Winnetou Almeida - Winnetou Almeida
Anne afirmou que deseja enfrentar homens; evento não consultou médicos e especialistas
Imagem: Winnetou Almeida

O evento de Manaus não possui a regularização da Comissão Atlética Brasileira de MMA, organização responsável por supervisionar o esporte no país e que segue a linha de conduta da Federação Internacional de MMA (IMMAF). A informação foi confirmada Cristiano Sampaio, diretor executivo da entidade.

O dirigente evitou analisar o evento, após questionamento do UOL Esporte. Sampaio, como uma das autoridades da comissão atlética brasileira, que trabalha até com o Ultimate Fighting Championship (UFC), disse que desconhecia o evento marcado para capital amazonense.

“Essa luta é um absurdo”

Enquanto atletas e promotores valorizam o combate, médicos possuem uma opinião completamente oposta sobre o encontro no octógono de uma transexual com um atleta homem. A reportagem ouviu dois especialistas, um em medicina no MMA e outro no tratamento de hormonioterapia direcionado para a população trans. Afinal, qual seria a vantagem ou desvantagem de Anne? Ambos consideram que a competidora naturalmente entra em uma condição abaixo a do oponente.

“Como médico, isso [a luta] é um absurdo. O trans, antes de mais nada, nasceu homem e sofreu modificações hormonais onde naturalmente há uma desvantagem. Não se trata de um homem ou mulher. Chega a ser um absurdo o adversário aceitar esta luta. A mulher trans sofreu uma carga de bomba hormonal muito grande para assumir a condição feminina”, afirmou o médico Oscar Arturo  Adriazola, que trabalha com eventos de MMA em Curitiba há quase 20 anos.

A linha de raciocínio de Oscar Arturo Adriazola é seguida por quem diretamente trabalha com este tipo de tratamento. O endocrinologista Alexandre Camara, do Hospital das Clínicas, reforça a posição do colega ligado ao MMA. Anne, com o tratamento durante um longo período, perde força e potência muscular; portanto, entra em desvantagem.

“É uma luta bem injusta. Ela está, provavelmente, tomando dois tipos de medicação: uma que bloqueia a testosterona e outra a formação da testosterona. Isso muda a massa muscular, dá mais gordura. Vai lutar no mesmo peso, mas com menos explosão e menos impacto nos golpes”, explica o médico que há três anos realiza este tipo de tratamento no hospital paulistano.

“Mesmo ela com o pênis, pode ter um nível de testosterona um pouco maior, mas nunca igual ao de um homem. Há uma pequena produção, mas o uso medicações que bloqueiam a ação masculina fazem menos testosterona que um homem. O justo seria ela lutar contra uma mulher, caso fique dentro dos níveis recomendados por Comitê Olímpico e órgãos regulamentadores”, encerra o doutor Alexandre Camara.