O último jogo de Batata

A história da vida e da morte do camisa 7 do Cruzeiro que morreu antes da final da Libertadores de 1976

Bruno Doro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo

O time do Cruzeiro entrou no estádio do Mineirão no dia 20 de maio de 1976 para enfrentar o Alianza Lima com Raul Plassman, Nelinho, Piazza, Eduardo Amorim, Jairzinho, Palhinha, Joãozinho... Era o esquadrão azul que, pouco mais de dois meses depois, conquistaria a Copa Libertadores da América pela primeira vez.

A estrela daquela noite, porém, não era nenhum deles. A camisa 7 ao lado do banco de reservas do Cruzeiro mostrava que Roberto Batata, um atacante de mais de 100 gols com a camisa azul, era a pessoa mais importante da partida. E ele não estava lá.

Batata tinha morrido sete dias antes em um acidente na rodovia Fernão Dias. O jogo, válido pelas semifinais da Copa Libertadores de 1976, foi carregado de significados.

A reportagem do UOL Esporte falou com jogadores do Cruzeiro e familiares de Roberto Batata sobre o atacante. E ouviu um relato que mais parece uma lenda.

Uma morte abala o Cruzeiro

Roberto Batata morreu no dia 13 de maio de 1976, um dia depois da vitória do Cruzeiro sobre o Alianza Lima por 4 a 0, no Peru. Ao chegar da viagem, ele pegou seu carro em Belo Horizonte para encarar quase 300 quilômetros de estrada até Três Corações, sul de Minas Gerais, onde sua mulher, Denise, e o filho de 11 meses, Leonardo, o esperavam. Ele nunca chegou ao destino: na rodovia Fernão Dias, ele colidiu com dois caminhões e morreu na hora.

"Acho que eu fui o último jogador a ter contato com o Batata. Sentamos juntos no avião, na volta do Peru, e ficamos conversando. Ele não falou que iria para Três Corações quando chegasse em BH", lembra o atacante Joãozinho, que tinha marcado duas vezes na partida - Batata marcou um dos gols e o outro foi de Jairzinho.

"Quem me deu a notícia foi o seu Carmine Furletti, que era o vice-presidente na época. Ele ligou em casa. Quando eu atendi, falei: 'eu vou lá'. Ele pediu para que eu ficasse. Não esqueço disso. Ele me disse: 'Não vai pegar carro, não vai atrás'", conta Eduardo Amorim, atacante do Cruzeiro e um dos melhores amigos de Batata naquele grupo de jogadores: "Eu fiquei no quarto com ele durante toda a Libertadores".

O clima em Belo Horizonte era de comoção quando as rádios começaram a noticiar o acidente. O Campeonato Mineiro teve duas rodadas adiadas e o velório, na sede do Cruzeiro, recebeu milhares de torcedores. Não só do clube celeste, mas também do América-MG e do Atlético-MG. "Eu não voltei para Minas com o time. Fiquei no Rio. Quando soube, no mesmo dia peguei um avião e cheguei em Belo Horizonte. Fui direto pra minha casa. Passei uma noite extremamente ruim, sozinho. No dia seguinte, fui para o velório. Todos os jogadores do Cruzeiro, do Atlético-MG, do América-MG...O Reinaldo estava lá e ele era ídolo do Atlético-MG", lembra o lateral Nelinho.

Após a tragédia, o Cruzeiro voltou a treinar alguns dias depois. "Era como se não tivesse acontecido. A gente demorou a acreditar. Então, até aliviou um pouco a dor quando a coisa começou a seguir, entendeu? Não houve uma comoção de falar: 'nossa, não dá para treinar', mas o futebol, a importância da competição, nada seria maior do que o que aconteceu com o Batata. Nem milhares de Libertadores compensam. Era menos importante, claro, mas pelo menos a gente tinha alguma coisa na frente para pensar", relata o ex-goleiro Raul Plassman.

A voz que ecoa

Foi nesse clima que o Cruzeiro entrou em campo para o segundo duelo contra o Alianza Lima em 20 de maio. A homenagem teve o trompetista da banda da Polícia militar executando o "Toque do Silêncio" e pétalas de rosas jogadas no gramado. Além disso, a camisa número 7, que Batata costumava usar, foi colocada ao lado do banco de reservas do Cruzeiro, para lembrar que o jogador estava, sim, alinhado para aquela partida.

"A gente estava em lágrimas porque poucas horas atrás o Batata estava com a gente e de repente não estava mais. Mesmo eu, como capitão do time, estava chorando. E os gols acontecendo e a gente chorando", lembra Piazza, o capitão da equipe.

A lenda começa no segundo tempo: o Cruzeiro vencia por 2 a 1 quando Jairzinho marcou o terceiro, aos nove minutos. Cinco minutos depois, veio o quarto gol, com Palhinha. É o próprio Piazza que conta:

"Quando nós fizemos 4 a 1, ao se abraçar para comemorar o gol, uma voz ecoou no meio daquele abraço de alegria dolorido: 'vamos fazer 7?' E não precisou falar mais nada. Todo mundo entendeu que sete era uma forma de homenagear o Batata.

Se você pega o placar, 7 a 1, muita gente pode dizer que fazer sete é fácil depois de marcar quatro, mas não é, por mais que o outro time esteja fragilizado. A gente fazia o gol, comemorava, chorava e pensava nele.

Agora, eu confesso a você: se perguntar para um outro jogador, Palhinha, Jairzinho, Nelinho, talvez eles vão dizer: 'não, eu não sei de onde veio a voz. Eu não fui'. Não me recordo de quem era a voz, se era a minha própria voz ou não. Mas ainda vou questionar alguns companheiros que estavam ali. O fato é que houve esse chamamento para fazer o sete e o sete aconteceu. Foi uma situação bem especial pra uma pessoa muito especial".

Nelinho não confirma a voz, mas corrobora a tese de que o placar, 7 a 1, estava escrito antes do jogo. "Tinha que ser sete. Quando estava 7 a 1, mais ou menos aos 45 minutos do segundo tempo, eu peguei uma bola pela direita e fui cortando, driblando os caras em diagonal. Em frente à área, fiz a tabela com o Jairzinho, ameacei chutar com a canhota e entrei na área. No bico da pequena área, meti a bola no canto esquerdo do goleiro. A bola pegou no travessão e foi pra fora. Aí, dentro da coincidência, a bola não entrou porque tinha que homenagear o Roberto Batata, tinha que ser sete."

A gente entrava em campo e tínhamos a impressão de que ele estava ali. A coisa foi se desenrolando e não tinha nada programado pra dizer: 'Ó, vamos jogar em nome do Batata, vamos jogar por ele?'. Não tinha essa coisa na cabeça, as coisas foram acontecendo

Raul Plassman, goleiro do Cruzeiro

Eu nem lembro se eu joguei. Se joguei, eu nem peguei na bola, ficou um trauma pra mim. Imagina você, no dia 12, está com o cara e no dia 13 ele morre. E depois você vai ao velório dele? Eu estava sem cabeça depois de tudo isso

Joãozinho, estava em campo no 7 a 1 em homenagem a Batata

Já estávamos praticamente classificados e em todos nós a emoção positiva do nosso ídolo Roberto Batata tomou conta. Quando nós chegamos ao quarto gol, falamos assim: 'Vamos seguir até onde nós conseguirmos chegar hoje?'. E quando chegamos ao sexto gol, falamos em tentar fazer o sétimo. E fizemos. O sétimo gol foi em homenagem a ele, que jogava com a camisa 7

Jairzinho, autor de quatro gols na partida, incluindo o sétimo

Quem era Roberto Batata

A comoção criada pela morte de Roberto Batata se justifica por números. Aos 26 anos, ele estava se tornando um dos principais atacantes do país no ciclo de preparação para a Copa do Mundo de 1978 - em 271 jogos, somou 110 gols. Na Copa América de 1975, no Peru, foi titular em todos os jogos do Brasil - apesar do desempenho abaixo do esperado da seleção.

Mas o que o fazia diferente? Batata era atacante, e um detalhe o diferenciava daqueles que o Brasil tinha nos anos 70: "Ele ajudava muito nos escanteios. Era o jogador que mais saltava e sempre colocávamos ele para marcar o destaque do outro time. Além disso, era um jogador que fechava bem o meio, completava bem o esquema do time, porque nós tínhamos muita gente no meio-campo", conta o ex-goleiro do Cruzeiro Raul Plassman.

Roberto nasceu em Belo Horizonte em 24 de julho de 1949. O apelido Batata veio logo. A origem, porém, é controversa. Quem pesquisar pelo Google vai ler que vem da paixão por batata frita na concentração. Mas a família tem duas versões diferentes:

"Quando pequeno, ele era fortinho. E todo mundo falava: olha o batatinha. O batatinha foi crescendo e virou Batata", diz o irmão Otávio, hoje com 75 anos.

Bem diferente do que conta Elge, outra irmã, de 83 anos: "Um treinador do juvenil do América-MG era assíduo lá em casa. Ele falou: 'Roberto, tem um cara lá que chama Batata. E ele era um cara feio pra danado'. E começou a rir. E começou a chamar o Roberto de batata. Pegou".

O esquadrão do Cruzeiro na Libertadores

Entre 1975 e 1976, nenhum time tinha, no Brasil, um elenco tão completo quanto o Cruzeiro. No gol, Raul Plassman era o titular da seleção. Nelinho era a estrela da lateral direita, Piazza e Zé Carlos davam consistência no meio-campo e, no ataque, o clube contratou Jairzinho. Após duas temporadas jogando na França, ele chegou para deixar ainda mais forte uma linha que tinha atletas consolidados, como Dirceu Lopes, Eduardo, Palhinha e Batata, e uma grande revelação, Joãozinho.

O resultado foi uma Libertadores impressionante, em que o Cruzeiro passou pelo Internacional de Falcão, que seria, em 1976, bicampeão brasileiro, na primeira fase, e pelo River Plate, da Argentina, na grande decisão. "Naquela época, o time do River tinha seis ou sete jogadores da seleção da Argentina. O time que a gente enfrentou era a base da seleção da Argentina que foi campeã do mundo em 1978, com o goleiro Fillol, o zagueiro Perfumo, o Passarela, o Luque... Mas o Cruzeiro também tinha um grande time. E o Joãozinho arrebentou nesta Libertadores", lembra Palhinha.

O atacante, então com 22 anos, foi a grande estrela da final contra os argentinos, graças a um detalhe. Nos dois primeiros jogos, Cruzeiro e River trocaram resultados. Em BH, 4 a 1 para o Cruzeiro. Em Buenos Aires, 2 a 1 para o River. Como previam as regras da Libertadores, o título foi definido em um terceiro jogo, em campo neutro. No estádio Nacional de Santiago, no Chile, Joãozinho cobrou uma falta no ângulo quando os argentinos ainda preparavam a barreira. O jogo terminou 3 x 2. Foi o primeiro título brasileiro da Libertadores da história que não foi conquistado pelo Santos de Pelé.

Pra gente chegar ali, ele foi muito importante. O Batata era um grande jogador, artilheiro, fazia diferença no nosso time. Ele contribuiu muito pra gente chegar onde chegou na Libertadores. Ele nunca se machucava. É evidente que o que aconteceu nos uniu. Dedicamos, realmente, o título ao nosso grande amigo. Se chegamos ali, ele também estava

Joãozinho, atacante do Cruzeiro

O acidente

O acidente que mudou o Cruzeiro aconteceu no dia 13 de maio de 1976. A história do acidente começa no dia anterior, no Peru. Em Lima, o Cruzeiro fez 4 a 0 no Alianza Lima. Roberto Batata marcou um dos gols. O time mineiro voltou para o Brasil na mesma noite, mas o voo parou no Rio de Janeiro. "Pegamos o avião à meia-noite. Chegamos às seis horas da manhã no Rio e ficamos seis horas no aeroporto esperando o voo para BH. O aeroporto superlotado um calor, todo mundo morto", lembra Palhinha.

Na capital mineira, Roberto ignorou o apelo dos companheiros e resolveu pegar o carro para ir para Três Corações encontrar a mulher, Denise, e o filho bebê, Leonardo. A cidade ficava a quase 300 quilômetros da capital, em uma estrada de mão única e perigosa, a rodovia Fernão Dias. Por acaso, o carro foi para o interior do estado com só um ocupante. Poderiam ter sido três.

"Eu estava fazendo fisioterapia. Quando cheguei em casa, o rapaz que trabalhava no prédio me disse que o Roberto Batata queria que eu fosse com ele lá para Três Corações. Eu ainda falei: 'Eita, meu Deus do Céu, esse menino não tem juízo. Viajou a noite inteira e não podia me esperar?' Ele ainda passou em casa e devolveu a bolsa que havia pedido pra viajar", conta o meia Dirceu Lopes, que morava no mesmo prédio de Batata.

A outra pessoa que poderia estar no carro é a sobrinha de Roberto, Kate Cristina, hoje com 57 anos e morando nos Estados Unidos. Ela tinha 14 anos no dia do acidente. "Ele passou em casa pra me buscar, mas eu estava na escola. Lembro perfeitamente, como se fosse hoje: cheguei em casa e não tinha ninguém em casa. Só aquelas panelas. De repente, meus primos chegaram e falaram que o tio Bebeto teve um acidente. Ele me buscava para viajar com ele sempre. Eu era a companheira de viagem", completa.

Mas o que aconteceu?

Fizemos essa pergunta para Alexandre Dumas dos Santos Pinheiro, policial rodoviário aposentado de 65 anos. "Fui o primeiro a chegar no local. O cara do caminhão falou que ele [Batata] saiu da mão e veio em cima do caminhão, direto. Estava na mão dele e entrou na contra mão e colidiu de frente", lembra.

O policial, porém, não tem mais detalhes porque não concluiu o atendimento. "No dia do acidente, estava há um ano e meio na polícia e era bastante inexperiente. Quando falei o nome da vítima, o meu colega no rádio, meu chefe, falou assim: 'Não conversa com ninguém. Estou indo praí'. Ele era mais experiente e trocou de lugar comigo porque eu podia soltar alguma informação que não era precisa e poderia cair alguma coisa errada na imprensa".

Assim como falamos com o policial responsável pelo atendimento, fomos atrás do motorista do caminhão que colidiu com o Chevette de Batata. E encontramos: Nélio Gomes Vieira hoje tem 65 anos e trabalha como motorista nos Correios de Belo Horizonte.

"Bom, faz muito tempo, são 43 anos. O que eu posso falar é que, primeiro, ele bateu no caminhão do DER de Poços de Caldas, não no meu. Ele ia sentido São Paulo e saiu da pista, foi para a contramão e bateu no pneu traseiro do caminhão do DER. Esse caminhão estava cheio de esteiras de trator. Era um Mercedão, e ele passou por baixo da carroceria. Arrancou o lado esquerdo do carro todo. Aí, fez o cavalo de pau e o lado da porta direita bateu no caminhão que eu estava dirigindo", lembra Nélio.

Roberto Batata foi lançado para fora do veículo. Quando o socorro chegou, já era tarde.

No meio da apuração, descobrimos outro detalhe infeliz. O caminhão era de uma tecelagem de Belo Horizonte e o proprietário era amigo dos jogadores do Cruzeiro. Incluindo Batata. "Eu sempre ouvia o programa esportivo da rádio Itatiaia e eles falaram do acidente com o Roberto Batata. Na hora, não liguei aquele acidente ao que o meu caminhão tinha sofrido. Fui para casa, e o motorista me ligou de novo, confirmando que se tratava do jogador do Cruzeiro. Foi uma surpresa desagradável porque nós andávamos muito juntos, eu, o Eduardo, o Joãozinho e o Roberto Batata", conta Márcio Gomes, hoje com 69 anos.

O que pode ter acontecido

Os ouvidos pela reportagem trabalham com a hipótese de que Batata dormiu ao volante. Ele tinha acabado de voltar de uma viagem desgastante, estava sozinho e em uma rodovia perigosa. "Já viajei por esse mundo todo e você não dorme nessas viagens. Ainda mais ele, que era medroso, tinha um medo fora do normal de avião", analisa Dirceu Lopes, corroborando a versão de que o companheiro poderia estar cansado após o voo do Peru e conexão longa no Rio.

"Tem um detalhe muito importante que eu não sei se alguém comentou. Às vezes, ele dormia conversando com você. Era impressionante. Dobrava o pescoço assim, em cima do ombro, e dava umas cochiladas. Então, no acidente ele deve ter dormido. O motorista do caminhão falou que tirou para o acostamento e ele [Batata] veio em cima", diz Raul Plassman.

Um dos melhores amigos de Batata no elenco, o ex-meio-campista Eduardo Amorim tem outra história para contar: o Chevette em questão tinha acabado de voltar de uma oficina mecânica, para onde Eduardo e Batata tinham levado antes da viagem para o Peru. E ainda contrapõe a suposição de Dirceu Lopes. "Eu fiquei com essa dúvida. Foi o carro ou ele dormiu? Porque eu estava ao lado dele no avião e ele dormiu na viagem. É claro que pode ser algo com o fuso, também. Ele era um cara que, como a gente falava, dormia à toa. Mas eu fiquei nessa dúvida. Depois eu fui me conformando".

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