Na várzea aos 80 anos

Você conhece o âncora de notícias Joseval Peixoto, mas ele narrou o tri em 70 e recriou o Desafio ao Galo

Marcelo Tieppo Colaboração para o UOL, em São Paulo Marcelo Tieppo/UOL

Joseval Peixoto teve a honra (e a sorte) de ser a voz do rádio em São Paulo que narrou os trinta minutos finais do tricampeonato mundial do Brasil no México, em 1970. "Os três gols do Brasil foram nos 30 minutos finais, eu que narrei tudo. Só eu e mais ninguém. O Fiori (Gigliotti) do meu lado, sem falar. O Pedro (Luiz) do meu lado, sem falar, porque já tinham irradiado. Foi a minha consagração", relembra Joseval, que hoje, aos 80 anos, voltou a narrar futebol, ressuscitando o Desafio ao Galo, um torneio de várzea transmitido pela TV Gazeta. É uma espécie de volta às origens já que ele começou a carreira de locutor esportivo em Presid ente Prudente, aos 16 anos, narrando jogos de várzea.

Quando se fala em sorte não é nenhum desmerecimento ao trabalho do locutor, que na época já era um dos mais famosos do rádio. Em 1970 não havia satélite e apenas uma linha para três emissoras de São Paulo: Bandeirantes, Jovem Pan e Nacional. Os locutores, seguindo a sugestão de Pedro Luiz, concordaram então que nas partidas da Copa o primeiro narrador abriria e fecharia a transmissão, o segundo faria o primeiro tempo e o terceiro, o segundo tempo.

Só que na decisão, caso o Brasil chegasse lá, teria de ser diferente. Eles dividiram a partida em três tempos de 30 primeiros minutos. Então, chamaram Paulo Machado de Carvalho, o Marechal da Vitória, para fazer o sorteio. "Eu ganhei os 30 minutos finais, que eram o filé daquela transmissão. E ainda peguei o jogo quando estava 1 x 1. Os acasos como esse de ser sorteado para narrar a parte final de uma decisão de Copa do Mundo aconteceram em todo a minha vida", diz Joseval. E o leitor vai perceber que ele não está exagerando ao acompanhar essa entrevista que o locutor concedeu para o UOL Esporte.

Marcelo Tieppo/UOL
Reprodução/Arquivo Pessoal

O acaso vai me proteger

Depois de sair de um colégio interno, Joseval foi fazer o colegial em Paraguaçu Paulista, no interior de São Paulo, e mudou para a casa de uma tia, quando o primeiro acaso o colocou no caminho do rádio. "Meu primo era locutor de alto falante. Toda noite eu ia com ele no serviço de alto falante. E quando entrava a Voz do Brasil, ele saía do ar e ficava me ensinando."

"Acabei de aprender a falar no microfone quando abriu uma vaga em uma rodoviária ao lado de casa. O cara precisava de um locutor pra falar das lojinhas que tinham aberto. Meu primo falou que eu era locutor e pediu pro cara me contratar. Eu, com 15 anos, ganhava 300 cruzeiros. Para você ter uma ideia do valor, o cigarro na época custava 1,40 e durava 3, 4 dias. Como minha mãe pagava a pensão pra minha tia, eu não tinha nenhum gasto, só com cigarro."

Joseval terminou o primeiro colegial e seguiu para Presidente Prudente. Com os quatro meses de experiência na rodoviária e mais dois meses de uma passagem relâmpago por uma rádio de Paranavaí, foi buscar emprego em uma rádio local. "Quando cheguei em Prudente, fui mascarado e me apresentei como radialista, imagina? Comecei na várzea e foi lá que aprendi a narrar futebol. Flávio Araújo, grande locutor da Bandeirantes, era meu chefe. Ele narrava o jogo principal e eu narrava o segundo."

Arquivo Pessoal e Marcelo Tieppo/UOL Arquivo Pessoal e Marcelo Tieppo/UOL

A mudança para São Paulo

Como a mãe ficou doente, Joseval voltou para o Paraná. Ficou só quatro meses em uma rádio de Londrina. As duas rádios de Presidente Prudente ficaram sem locutores esportivos, que tinham sido contratados por emissoras de São Paulo. Disputado pelas duas, o locutor não esquece do gerente de uma delas que foi de avião contratá-lo. "Eu não tinha 20 anos, isso foi no começo de 58 e eu nasci em 38. Os caras foram de avião buscar um moleque."

Foi aí que o tal acaso entrou novamente em campo. Joseval foi narrar a final da primeira divisão do Campeonato Paulista (que era a Segunda Divisão na prática) entre Corinthians de Presidente Prudente e o Bragantino. Edson Leite, que trabalhava na Rádio Bandeirantes e era considerado uma espécie de Boni na época, foi visitar a rádio. O narrador aproveitou para dizer que gostaria de trabalhar em São Paulo.

"Ele falou: você tem uma fita aí e eu falei tenho. Mostrei a fita e ele falou 'tá contratado. Pode ir pra Bandeirantes'. O cara caiu no meu colo. Impressionante como todas as portas se abriram pra mim na minha caminhada."

As Copas de Joseval

A Seleção estava recolhida nos castelos medievais do México. E o exército fazia a segurança. O Brasil vivia o militarismo. Você só podia entrevistar uma vez por semana, durante uma hora, quando o portão era aberto

Sobre a Copa do Mundo foi realizado em 1970, no México, época da Ditadura Militar

O Geraldo Blota (repórter) conseguiu furar o bloqueio porque tinha um bom contato com o Rivellino. Ele entregava o gravador pro Riva, que fazia as entrevistas com os outros jogadores e a gente reproduzia depois

Lembrando como os jornalistas se viravam para levar informação ao público

Em 78, minha mulher me acompanhou pela primeira vez em uma cobertura e foi ela quem trouxe a fita da abertura pra Record exibir. Queriam apreender a fita e ela falou que eles poderiam até apreender a fita, mas que nela estava a transmissão da abertura da Copa do Mundo. Aí a Polícia Federal compreendeu e liberou

Sobre como garantiu que a Record mostrasse a abertura da Copa da Argentina

A tabelinha com Leônidas da Silva

Na Pan, Joseval conviveu durante muito tempo com Leônidas da Silva, o Diamante Negro, um dos grandes ídolos da história do futebol brasileiro, que era o comentarista da rádio. Por isso, conta boas histórias dessa parceria. "O Leônidas era muito mão fechada. Ele levava uma mala vazia nas viagens e voltava com vários produtos para revender no Brasil. Teve uma vez que eu voltei pro quarto do hotel e flagrei o Leônidas usando a gilete que eu tinha comprado para fazer a barba."

"Eu considero que o Brasil teve muitos craques, mas só três gênios. O Friedenreich, que eu não vi jogar, mas conheço pelo que o Leônidas me contou. O próprio Leônidas e o Pelé, que foi o maior de todos."

"Durante uma viagem ao Uruguai, o Leônidas, que era socialista, foi visitar o Leonel Brizola no exílio e me convidou para ir junto. Nunca me esqueço da alegria do Brizola quando levamos um maço de cigarro sem filtro do Brasil pra ele. Aproveitei para perguntar a opinião dele sobre o que tinha acontecido no país e ele respondeu. 'O Jango (João Goulart, presidente deposto em 64) foi um cagão. Era só ter gritado mais alto com os generais do Exército que não teria acontecido nada. Esses caras são treinados para obedecer e quanto maior a hierarquia, mais eles obedecem'."

Reprodução/Marcelo Tieppo Reprodução/Marcelo Tieppo

Brasil, a pátria da locução

"Em 1974, eu estava na Rádio Bandeirantes, tive um atrito lá e acabei voltando para a Jovem Pan. Nessa época, o Osmar Santos já tinha começado lá também. Aí criaram uma publicidade na rádio com um anúncio que tinha a foto dos dois e o título: 'Quando não é um, é outro'. Eu fiz parceria com o Osmar na Pan, com o Fiori Gigliotti na Bandeirantes e com o Haroldo Fernandes na Tupi. Esse é o meu currículo."

Quando a gente ia cobrir jogos na Europa, eram 13 papagaios gritando na cabine ou na arquibancada. As três primeiras filas do estádio não olhavam pro jogo, olhavam pra nossa cara, querendo saber quem eram os malucos que estavam gritando. Ficavam olhando pra nossa cara e davam risada. Eles não acreditavam. Hoje, o mundo inteiro irradia, mas quem criou foi o Brasil. Somos os mestres desse estilo no mundo inteiro.

Fui trabalhar na Tupi, em 78. Eles tinham acertado a contratação do Fiori, mas ele desistiu e continuou na Bandeirantes. Aí me chamaram pra conversar e disseram que tinham feito uma pesquisa em todas as agências de publicidade e meu nome tinha aparecido como o de melhor narrador. Me ofereceram 10 vezes mais do que eu ganhava na Pan e foi pela Tupi que eu cobri a Copa da Argentina. Só que, em 80, o grupo da Tupi faliu e eu voltei para Pan, mas deixei de ser narrador de futebol."

Roberto Nemanis/SBT

Ex-SBT, ele apresentou o Jornal da Manhã por 38 anos

Embora seja considerado um dos maiores narradores esportivos do país, Joseval ficou mais conhecido nos últimos 38 anos pelo Jornal da Manhã, na Rádio Jovem Pan, que apresentou desde 1980. Ele foi âncora até agosto do ano passado. Ficou mais quatro meses fazendo apenas o monólogo de encerramento até se despedir, de vez, em dezembro.

Em 2011, foi contratado por Silvio Santos, ouvinte assíduo da emissora de rádio, para apresentar o SBT Brasil, ao lado de Rachel Scherazade. Permaneceu na emissora por sete anos. "Passei 65 anos fazendo rádio, dos 15 aos 80. Quando passei a fazer TV, saía da emissora umas 20h30 e chegava em casa quase 22h. Acabava dormindo pouco. Cedinho já estava na Pan apresentando o jornal."

Na passagem pela Pan, Joseval não se limitou a narrar futebol. A emissora foi a pioneira na transmissão do Carnaval carioca. "Foi o Tuta (dono da emissora) que inventou isso. Pedi ajuda para o repórter Israel Gimpel, que me explicou como funcionava o carnaval, o que era o enredo, o amor das comunidades. Nos enredos daquela época eles usaram Os Sertões, do Euclides da Cunha, Macunaíma, do Mário de Andrade. Foi aí que eu descobri que aquilo era o maior teatro popular do mundo, foi muito bonito. Isso foi nos anos 70, as transmissões na TV começariam dez anos depois."

Joseval também se formou em Direito e se especializou na área criminal. Mantém ainda o escritório de advocacia, mas quem cuida é um dos filhos. "Eu venho aqui todo dia, mas só pra tomar café e conhecer alguns clientes. Meu filho é que toca o escritório."

Reprodução/Facebook/Desafio ao Galo Reprodução/Facebook/Desafio ao Galo

Nos braços do povo

"Eu já tinha decidido parar quando fizesse 80 anos. Tenho escritório pago, casa paga, vou ganhar mais dinheiro pra quê? Pra guardar na gaveta do caixão? A rotina estava muito puxada pra mim. Deixei de apresentar o SBT Brasil no final de 2017 e no ano passado saí da Jovem Pan, justamente depois de completar 80 anos.

Queria trabalhar apenas uma vez por semana. A minha primeira ideia era retomar o Vox Populi, na Cultura (programa de entrevistas de muito sucesso), que eu apresentei na década de 80. Mas aí apareceu a oportunidade de fazer o Desafio ao Galo. Futebol é só alegria. Os caras fazem uma festa quando eu chego, me apresentam pro filho, pro neto. Você passa pelo meio do povo, não tem portão. Eu do portão até a cabine, demoro meia hora. Abraça daqui, de lá. Impressionante o carinho que o povo tem pelos narradores.

A gente tem feito cada jogo em um estádio. Audax, Campo Grande, Sete de Setembro. São 8.500 times oficializados na prefeitura, mas existem mais de 15 mil clubes de várzea em SP. E antes eles jogavam em terrão, agora tudo com grama, tem arquibancada. No regulamento, é obrigatório ter dois meninos de 18 anos. Casagrande, Cafu, Enéas, César Sampaio, Dener... Todos eles já foram esses meninos do Desafio ao Galo. É um projeto de inclusão social. Eu faço a produção do evento e a TV Gazeta cede o espaço. A audiência lá é muito baixa. Chegamos a dar 1,8 na estreia e virei um herói lá dentro (solta uma gargalhada).

Narrar na TV é mais simples, porque no rádio você precisa criar a imagem. Na TV, a pessoa está vendo, fica mais fácil. A imaginação do ouvinte é mais fantástica do que a realidade."

Marcelo Tieppo/UOL Marcelo Tieppo/UOL

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