Marcado na pele

Junior Urso sofreu racismo na China e fez uma tatuagem para reafirmar quem ele é

Arthur Sandes e Luiza Olivera do UOL, em São Paulo Simon Plestenjak/UOL

Era um dia especial de trabalho para Junior Urso. Ele vestia a camisa do Guangzhou e seu time ganhava um clássico local na China em 2017. Mas, no decorrer do jogo, em um lance comum, Urso cometeu uma falta. Entre tantas que um volante comete na carreira. Foi o suficiente para o adversário ficar muito irritado. Bravo, ele se aproximou de Urso e esbravejou: "macaco".

A primeira reação foi um grande susto. O jogador perguntou o que o rival havia dito, torcendo para ter entendido errado. Veio a confirmação. Era "macaco". Incrédulo, precisou de um tempo para assimilar o que estava acontecendo. Ele adorava a China, era muito querido no país e sempre havia sido muito bem tratado.

Urso achava que sabia o que era racismo. Não sabia. Ficou mal, viu seu irmão e sua noiva ficarem mal. Nunca tinha sofrido uma injúria racial e jamais esperaria passar por aquilo. Ele sempre teve orgulho de ser negro, mas seu tom de pele o poupou de muitas coisas num país colorista que julga as pessoas pelo nível de branquidão da pele.

O adversário até pediu desculpas depois. O volante aceitou, não queria carregar o peso de um erro de outra pessoa em suas costas. Mas Urso escolheu carregar para sempre a lembrança do caso. Na alma e na pele. "É algo que fere nossa carne".

Eu achava que eu sabia como era passar por isso, como era a dor das pessoas que sofreram racismo, mas eu realmente não sabia. Assim que o rapaz se expressou dessa forma, eu senti realmente o que era o racismo. Fiquei bem mexido mesmo quando ele me chamou de macaco. Tanto que eu não acreditei que ele estava falando aquilo: perguntei o que ele estava falando, ele repetiu

Junior Urso, sobre episódio de racismo que sofreu na China

O Daniel Alves comeu a banana e eu pensava que faria o mesmo. Mas não consegui. Cada um reage de uma forma, absorve de um jeito. Quando ele falou, foi um susto muito grande. Eu realmente não sabia o que era o racismo antes de passar por isso. Hoje, graças a Deus, estou conseguindo superar isso. Se eu passasse por isso de novo, desta vez eu não reagiria como na época. Mas na época fiquei muito triste

Junior Urso, sobre episódio de racismo que sofreu na China

Simon Plestenjak/UOL

A tatuagem dos Panteras Negras

O episódio havia mexido fundo com Urso, mudado sua história. Ele sentia a necessidade de se expressar, de reafirmar para o mundo e para si próprio quem ele era. Foi aí que veio a ideia de fazer uma tatuagem. Assim que voltou ao Brasil em dezembro de 2017, marcou o corpo. Um punho cerrado no meio das costas em homenagem aos Panteras Negras, partido político, ativo entre 1966 e 1982, que liderou o movimento negro norte-americano.

"Resolvi fazer essa tatuagem para representar o poder que a raça negra tem. Todos nós seres humanos somos iguais, mas esta situação é chata, inúmeros negros na história já passaram por várias situações difíceis e superar isso mostra o poder e a força que o negro tem. Fiz representando e me assumindo como negro que sou, contra qualquer tipo de injúria deste tipo".

O gesto simbólico dos Panteras Negras foi eternizado nos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México. Tommie Smith e John Carlos ganharam as medalhas de ouro e bronze e subiram no pódio para a premiação dos 200 metros do atletismo. Durante a execução do hino norte-americano, nada de sorrisos. Lançaram os punhos cerrados ao alto com luvas pretas em protesto contra o preconceito racial nos EUA e pedindo igualdade de direitos civis. A cena ficou marcada na história do esporte.

"Eu pensei bastante nesta tatuagem por serem pessoas do esporte que fizeram este manifesto. E pensei da mesma forma. É uma história que já tinha visto várias vezes e reli antes de fazer a tatuagem. Eu fui diretamente no motivo para eles erguerem os punhos. Li toda a história, sobre Malcolm X [ativista e líder do movimento negro nos EUA] e outros negros que até morreram pela causa, pela igualdade. Foi pelo que eu tinha passado na China e pelo que vários negros passam. Eu estava sofrendo naquele momento e precisava me expressar, então me expressei desta forma. Para mim é um prazer ter algo tão expressivo no meu corpo, ainda mais pela forma como esses caras fizeram".

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O sucesso do negro incomoda

"Ainda existem lugares em que as pessoas se incomodam com o sucesso das pessoas negras. É como se o negro estivesse ocupando um lugar que eles acham que não deveria ocupar. Mas o mundo está aí para todos, todos nós temos o direito de ir e vir onde quisermos.

Eu sofri racismo duas vezes na minha vida: o primeiro foi na China, e outro foi em Florianópolis, onde eu moro, no final do ano passado. Foi algo que também me deixou mal, eu fiquei sem chão mesmo sabendo que era possível acontecer. Lá em Florianópolis há negros, é claro, mas eu estou morando em Jurerê e naquela área são poucos negros; é bem difícil. Tem mais na época de temporada, no verão, quando todo o mundo viaja para lá para curtir a praia.

E lá tem uma casa de show, um lugar bacana, e o pessoal que organiza não tem nada a ver com o que aconteceu comigo. Mas eu estava com meu irmão e um primo, que também são negros, em um espaço. Eu fui sozinho ao banheiro e eles ficaram esperando.

Quando entrei no banheiro, um rapaz chegou em seguida e começou a dizer 'não adianta você falar que tem dinheiro, porque seu lugar não é aqui'. Não diretamente para mim, mas fingindo que estava falando sozinho. 'Você sabe que seu lugar não é aqui, só tem você desse jeito'. O cara não parecia estar alcoolizado e também não foi nada por eu jogar no Corinthians, porque ainda não estava aqui. Eu era só mais um cara.

Ele começou a dizer esse tipo de coisa, e as outras pessoas me pediam calma. Como eu nunca briguei em lugar nenhum na minha vida, eu não faria isso lá também. Quando ele agiu dessa forma e eu percebi, olhei para a cara dele. Ele olhou para mim sério, juntou as mãos e ficou falando 'o que você quiser; o que você quiser?' Ele estava querendo arrumar uma confusão comigo.

Graças a Deus eu tive tranquilidade suficiente para não fazer nada. Eu estava meio aéreo na hora, e quando contei para meu irmão e meu primo - que são um pouco mais bravos -, eles queriam ir pegar o cara. Mas eu não quis contar quem tinha sido, então continuamos no local como se nada tivesse acontecido e depois viemos embora em paz.

Eu levo meu trabalho muito a sério, então sei que tudo o que eu fizer ali fora vai refletir no futebol. Ninguém vai interpretar que eu sou um ser humano em uma briga de trânsito, ou uma discussão de condomínio. Ninguém interpreta que é o Junior. É sempre o Junior Urso do Corinthians. Então, penso sempre na minha carreira, que não tem manchas e quero manter assim até o fim. Sonhei muito com isso e não quero deixar que um momento assim, coisa de segundos, atrapalhe tudo o que eu construí desde pequeno."

Não é todo mundo que passa por uma situação triste como foi comigo e consegue respirar e ir embora. Não é certo ter violência, mas não vou julgar quem tiver outra atitude. Eu até entenderia porque é difícil controlar

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Neymar e Thiaguinho deveriam ajudar mais a causa

O esporte é um dos palcos essenciais para discutir racismo, como Junior Urso deixa claro ao tatuar um símbolo eternizado por dois atletas negros. O ativismo dos tempos de Tommie Smith e John Carlos, refletido por aqui nas falas de Paulo César Caju e Afonsinho, acabou se perdendo com o tempo e hoje são pouquíssimos os que discutem abertamente a questão racial no Brasil.

"Ainda falta um pouquinho outros negros que têm nome [combaterem o preconceito]. Tem pessoas no nosso país que todos ouvem quando se expressam, então faltam outros negros com poder de voz se expressarem um pouco mais e brigarem pela causa", cobra Urso, que é um dos poucos a tornar públicos seus ideais de igualdade.

Os exemplos estrangeiros são mais comuns desde que Colin Kaepernick, jogador da NFL, protestou contra a violência da abordagem policial aos negros dos Estados Unidos. Ele foi apoiado por LeBron James e Serena Williams, por exemplo, dois nomes da prateleira mais importante do esporte de alto rendimento, além de colegas brancos, como a jogadora Megan Rapinoe. No Brasil, porém, impera um silêncio indigesto no qual pouquíssimos atletas (ou artistas) discutem abertamente o racismo - ou pautas sociais em geral.

"Só vai haver igualdade quando este tipo de pessoa também falar, porque muita gente se espelha nelas", defende Urso. "Na música temos o Emicida, um rapper que está brigando pelo seu espaço. Talvez o Thiaguinho fosse um cara legal de falar mais sobre isso, apesar de estar em outras situações, na televisão - de repente tiram ele de lá se ele insistir nisso. O próprio Neymar também... Outros negros deveriam se expressar mais, ajudar mais na causa", opina o volante, que não poupa nem Pelé. "Eu nunca o vi falar sobre isso. Seria interessante ele agir desta forma."

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"Tentei alisar o cabelo, mas vi que podia me assumir"

Junior Urso estampou na pele sua negritude. E faz questão de reafirmar o orgulho de suas raízes também no estilo de vida. Ele é fã da cultura hip hop, valoriza o cabelo natural e em casa o tema é assunto frequente em conversas com a esposa e familiares mais próximos. Tudo acaba girando em torno disso.

"Tenho orgulho de ser negro. Tudo o que eu faço, acabo percebendo que vai muito para esta cultura negra, gosto muito da cultura hip-hop, então acabo me vestindo parecido. Meu cabelo também. Quando novo ainda teimei de alisar o cabelo, mas depois de um tempo vi que não tinha necessidade: eu podia me assumir do jeito que sou. Tudo que eu faço acaba levando mais para esse lado, e é algo que gosto. Gosto de ser natural, e acho que tem muito a ver com esta cultura que represento."

No entanto, ele faz questão de ressaltar que não se considera "bitolado". "Tenho amigos, inclusive, que são bem bitolados nestas histórias: que o negro é muito visado, perseguido. Não que eu desacredite disso, mas não sou bitolado a este ponto. Sou bem eclético na vida, procuro fazer de tudo um pouco. Mas realmente afirmo meu orgulho de ser negro."

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

"Fui registrar minha filha. Pedi que fosse negra"

Junior Urso luta contra uma lógica racista de sociedade que privilegia brancos e impõe padrões de beleza baseados nos traços europeus. Por isso, ele se preocupa com o futuro da filha Antonella, que é negra e veio ao mundo há poucos meses. O jogador faz questão de ressaltar as raízes da pequena desde o nascimento.

"Ainda não tive oportunidade de pensar muito de tão apaixonado que estou por ela. Ela é muito novinha. Mas pensei sobre isso no cartório, quando fui registrá-la. A moça perguntou se ela era parda ou negra, porque ela nasceu clarinha. Pedi para que fosse negra".

O volante diz que seus pais não conversaram muito com ele sobre episódios de racismo, mas que vai ensiná-la a nunca aceitar.

"Vou procurar ensinar a ela que todos nós somos iguais, isso é o importante. Nunca abaixar a cabeça e deixar que os padrões a afetem: ela tem que ser o que ela achar que tem que ser".

Newton Menezes/Futura Press Newton Menezes/Futura Press

Temos direitos de assumir funções cerebrais no futebol

O futebol é considerado um espaço mais democrático em que negros têm chance de ascensão social. Mas ainda há enormes falhas, especialmente em posições consideradas "cerebrais". Ainda é raro haver técnicos negros e no Brasil persiste o mito de que goleiros negros não são confiáveis. A lógica vem desde a Copa de 50 em que Barbosa foi considerado culpado pela derrota do Brasil na final e carregou o rótulo de vilão pela vida inteira.

"Parece que no Brasil tudo começa com uma brincadeira e o negócio fica muito sério. Esta situação do goleiro negro é algo que criaram no passado e se mantém até hoje como algo muito pesado. E existe, cara. Se for ver na história, são pouquíssimos goleiros negros. São poucos os que vi jogar. É claro que há negros capacitados para serem goleiros, meio-campistas, técnicos. Todos nós temos direito de assumir também funções cerebrais".

Junior Urso acredita que o futebol é um espaço mais igualitário na divisão entre negros e brancos em relação a outros setores da sociedade. Mas nem por isso o racismo é mesmo frequente. Ele se lembra bem do episódio envolvendo o goleiro Aranha que o marcou bastante.

"Fiquei muito chateado. Não que eu queira que a pessoa que agiu daquela forma seja presa, mas é um negócio que mexe com a gente. A gente vê que a Justiça vai atrás para resolver alguma coisa, acaba não resolvendo e a pessoa continua vivendo a vida dela normalmente. Hoje eu sei que mexeu com ele, por tudo o que passei".

Urso acredita que as redes sociais acabam facilitando a ação dos criminosos e ajudaram o racismo a se tornar mais frequente. "Gosto de acompanhar o que acontece na internet, ler comentários, e vejo que o pessoal se sente muito à vontade. A internet deu microfone para muita gente, deu este poder da voz. O pessoal fala bobagem, ofende qualquer um porque sabe que não vai ser alcançado ou punido pelo que que diz."

Esse tipo de guerra vai existir enquanto não houver igualdade. Sinceramente, torço para que o mundo continue a melhorar, que a gente não tenha que se espelhar naquela situação de o negro servir o branco. Espero que a gente consiga buscar isso de alguma forma, porque somos iguais e todos merecemos o melhor, buscamos o amor.

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

Apelido surgiu por causa do cabelo em peneira no São Paulo

Quais sacrifícios um garoto é obrigado a fazer para virar jogador de futebol? Na trajetória de Junior Urso, até o cabelo foi visto como obstáculo - mas acabou virando inspiração. "Eu faria um teste no São Paulo quando novo, e meu empresário me falou 'tire as tranças, porque lá eles não gostam dessas coisas'. Como eu estava precisando da oportunidade, tirei. Mas meu cabelo estava gigantesco e, se ele me falasse para cortar, eu não cortaria", relembra o volante.

Junior não passou na peneira, mas o apelido, sim. "Na primeira bola já gritaram 'Urso', e eu não podia responder ninguém no teste, né? Depois, quando cheguei no Santo André, alguns conhecidos ficaram sabendo do apelido. Ainda calhou de eu ficar dormindo em tudo quanto é lugar, então até o treinador passou a me chamar de Urso", conta, hoje já habituado e despreocupado com o novo nome. "Como tem muito Junior no futebol, ficou uma coisa diferente."

Junior Urso não tem certeza se o episódio teve a ver com racismo, mas não descarta a possibilidade porque o cabelo, hoje, é também uma afirmação de sua negritude. "Pode ser que essa situação se encaixe nesta questão do racismo... Ou não, não sei bem."

Daniel Vorley/AGIF Daniel Vorley/AGIF

Torcedor em campo, Urso vive sonho no Corinthians

Ocimar de Almeida Junior não escolheu a bola tão cedo: preferia soltar pipa a jogar futebol e só passou a se dedicar seriamente à carreira com quase 17 anos. Começou no Santo André, onde virou "Urso", então passou por Paraná e Avaí até decolar no Coritiba. Após duas passagens pelo futebol chinês e um ano de destaque no Atlético-MG, o volante ganhou a torcida do Corinthians logo no dia do anúncio, quando revelou torcer pelo clube desde criança.

"Todo dia quando acordo percebo que estou vivendo meu sonho. Valeu a pena cada minuto, cada ônibus lotado que peguei às 4h da manhã para sair de Taboão da Serra e treinar em Santo André [um trajeto de mais de duas horas]. Sempre fui disciplinado para este tipo de coisa, mas hoje vejo que valeu a pena não ter desistido lá atrás, ter morado debaixo da arquibancada", recorda Junior Urso, com semblante satisfeito e consciente, mas não presunçoso.

"Hoje estou sentado na mesa dos melhores, dentro do Corinthians. Sei que fiz por onde, mas estou mais disciplinado ainda porque sei que estou representando milhões de pessoas que queriam estar aqui no meu lugar. Quantos corintianos não sonham em vestir a camisa do próprio time? Hoje tenho essa oportunidade e estou vivendo intensamente", afirma Urso, que se sente realizado, mas evita se acomodar. "Ainda sonho com muita coisa..."

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