Depois da explosão

A história de Marisa de França, repórter que perdeu o bebê após um rojão no Pacaembu

Bruno Freitas e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Iwi Onodera/UOL

5 de novembro de 1994

Ela era a repórter "solerte", como dizia o chefe Roberto Avallone na famosa equipe de esportes da TV Gazeta dos anos 90. Marisa de França tinha acabado de voltar da cobertura da Copa de 1994 e vivia, naquele momento, o auge de sua carreira.

Mas o dia 11 de novembro de 1994 aconteceu. Parecia uma tarde normal de trabalho no Pacaembu, mas aquele Santos x Vasco foi um marco da sua vida.

Pode ter sido uma infelicidade acidental, mas também uma prova de como o universo do futebol costuma ser hostil. Ao deixar a cabine da Gazeta no estádio, um rojão explodiu a alguns metros de Marisa. A repórter se refez do susto para concluir a cobertura do jogo, mas pouco depois passou mal.

Naquele dia, Marisa estava grávida de cinco meses. O bebê não sobreviveu ao episódio. O que era para ser uma tarde corriqueira mudou tudo para Marisa. Depois de entrevistar "peixões" como Senna e Maradona, a vivência no esporte estaria próxima do fim. Como mãe, a alegria do parto só viria cinco anos mais tarde, com a chegada de Isabella.

Iwi Onodera/UOL
Arquivo pessoal

No auge da carreira

Sem direitos de transmissão, a equipe da Gazeta enviada à Copa nos EUA teve que fazer a chamada cobertura "na raça", com criatividade para trabalhar sem frequentar áreas oficiais da Fifa, por exemplo. Com esse espírito, Marisa de França conseguiu façanhas como uma entrevista exclusiva com Romário, o "cara" do Mundial.

"A princípio é frustrante, porque você não pode ficar no gramado, e tudo acontece lá. Então, você tem que ter perspicácia. Eu lembro que um pouco antes de a gente ir para a Copa, lá na Granja Comary [em Teresópolis, RJ], fiz uma entrevista com o Romário depois do treino. A gente ficou sentado no gramado conversando por mais de uma hora. Isso rendeu muito no Mesa Redonda", recordou.

Era o auge da carreira para Marisa, uma ex-campeã paulista de caratê, que se ligou em esporte muito cedo, por influência do pai que adorava ouvir futebol pelo rádio. A jovem que admirava Éder Aleixo na adolescência entrevistou o ídolo e depois foi aumentando a lista de entrevistados ilustres: Senna, Maradona, Telê Santana, Parreira.

Nos anos 90, Marisa de França era uma das caras da TV Gazeta, que atraía uma legião de amantes do futebol antes da explosão dos canais de esporte nas TVs fechadas. Então, veio um jogo de sábado no estádio do Pacaembu.

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Na hora, eu só senti uma dor grande na barriga e pensei: isso deve ser normal. Era a minha primeira gravidez

Marisa de França, que, na foto acima, volta ao local onde ouviu a explosão

O susto no estádio e o drama em casa

A explosão aconteceu quando Marisa deixou a cabine da TV Gazeta e começava o trajeto em direção aos vestiários do Pacaembu, para realizar as entrevistas pós-jogo no vestiário. A sensação da repórter foi a de que o rojão veio da área onde estava a torcida visitante, do Vasco. O artefato explodiu próximo da jornalista, que já no momento sentiu fortes dores.

"Eu ainda fui fazer o meu trabalho. Desci as escadas do Pacaembu e fui para os vestiários, fiz as entrevistas e depois fui para casa.

A dor começou a aumentar. Fiquei de repouso uns dois ou três dias, com sangramento. Aí não teve jeito. Eu estava de quatro para cinco meses. Tive um aborto espontâneo. Foi bem traumático.

Era um menino."

A jornalista lembra que estava especialmente feliz naquele período pós-Copa. O Brasil era enfim tetracampeão mundial, e ela voltava para casa com uma cobertura histórica no currículo.

"Eu vim da Copa do Mundo toda alegre, bacana. Tudo favorável. Aí cheguei aqui e aconteceu uma situação dessas. É uma coisa que a gente não gosta de lembrar muito. Jamais pensaria que ia fazer um jogo e que aconteceria uma coisa dessas.

Foi muito traumático ter perdido [o bebê]."

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Sobre o atrito com Roberto Avallone

A trajetória de Marisa no jornalismo esportivo terminou pouco depois do episódio no Pacaembu. Acabou em um embate com Roberto Avallone, então comandante da equipe da Gazeta.

"Quando voltamos da Copa, ele começou a ter problemas de saúde, teve um problema psiquiátrico. Ele começou a ter atitudes que não eram compatíveis com as de um diretor de departamento. Em função dessas atitudes inadequadas, eu acabei discutindo com ele. Depois disso saí da TV Gazeta, no início de 1995.

Ele estava desequilibrado emocionalmente, tanto que depois foi afastado. A gente discutia, ele era grosseiro. Começou a ter um desgaste da relação de chefe com repórter de especial.

Mas, apesar desse atrito, sou muito grata a ele por ter proporcionado esse espaço de liberdade, de criação, onde conheci pessoas maravilhosas.

O Avallone sempre valorizou muito a equipe. Ele era um cara que tinha uma visão ampla, tinha vindo do Jornal da Tarde. Às vezes, no esporte, fica aquela coisa meio batida, então a gente começou a fazer séries em três ou dois domingos com o mesmo tema. A gente fazia essa dobradinha bacana".

Arquivo Pessoal

Luxemburgo pediu "cabeça" de Marisa após título de 93

Antes dos atritos com o chefe na Gazeta, Marisa foi bancada por Avallone após uma reportagem elogiada durante as finais do Paulistão de 1993. A jornalista conseguiu um registro valioso do clima de tensão no Palmeiras antes do choque com o Corinthians e desagradou o então treinador novato Vanderlei Luxemburgo.

"Na final do Paulistão de 93, quando o Palmeiras saiu da fila, eu cheguei muito cedo no CT. Os jogadores já estavam lá. Eu falei para a equipe: 'vou dar uma olhada e ver o que está acontecendo'. O CT já estava vazio, mas eu vi um monte de carro e percebi que tinha uma conversa. Me aproximei da sala onde eles faziam as reuniões antes de começar o treino e ouvi um barulho. Era o Vanderlei muito bravo, falou um monte de palavrão, xingou os jogadores, foi bem agressivo. Falei: vou ter que gravar. Aí coloquei o microfone na janela e peguei toda aquela bronca.

Quando o Vanderlei saiu do vestiário, aproveitei e fui questioná-lo: por que falou com os jogadores dessa forma? Aí ele falou assim: 'se você colocar isso no ar eu vou dizer que é mentira'. Era um furo, ninguém tinha isso.

O Vanderlei ligou lá e falou com o Avallone. Preciso fazer um elogio ao Avallone. Ele falou 'não'. Disse que a matéria iria para o ar de qualquer jeito. A matéria foi para o ar e o Vanderlei pediu a minha cabeça, falou para me mandar embora. O Avallone bancou a matéria no ar, um exemplo de como o jornalismo deve ser feito."

Nota da redação: em contato com a reportagem, Vanderlei Luxemburgo reconheceu o "furo" de Marisa de França em 1993, mas disse que jamais ligou para a direção da TV Gazeta para pedir a demissão da repórter

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Uma reverência ao antigo chefe

A entrevista com Marisa de França foi gravada antes da morte de Roberto Avallone, no último dia 25 de fevereiro. A reportagem, então, voltou a procurar a jornalista para colher um depoimento sobre seu ex-chefe na TV Gazeta.

"Estou emocionada pela morte do Avallone. Foi uma pessoa muito importante, porque ele tinha um conhecimento jornalístico muito interessante. Ele sabia ensinar isso. Na minha carreira como jornalista de esportes aprendi bastante com ele. Às vezes com algumas divergências, mas eu só tenho a agradecer ao Avallone.

Acabei deixando de fazer esporte num momento difícil de saúde para ele, um desequilíbrio emocional. Eu também era muito mais moça, talvez naquela época tivesse visto esta questão com outro olhar. Mas só agradeço a ele pela oportunidade de ter mostrado o meu trabalho como repórter."

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A vida após o jornalismo esportivo

O esporte passou para Marisa, mas não o jornalismo. Depois do intenso ano de 1994, a jornalista que se destacou na Gazeta acabou conhecendo outros terrenos.

A repórter recebeu um convite de um amigo, seu antigo chefe na Globo, onde passou no início de carreira. Marisa se juntou, então, ao time do Terra Brasilis, programa que falava sobre turismo na Bandeirantes, viajando o país.

Mais tarde, a repórter procurou outro amigo, José Luiz Datena, outro ex-colega da Globo de Ribeirão Preto. E, após os anos encarando os vestiários de futebol, Marisa topou a missão de trabalhar no Cidade Alerta, célebre programa de jornalismo policial da TV Record.

Adiante, veio uma passagem pela TV Câmara. Em seguida, a repórter trocou a agitação do jornalismo diário pela assessoria de imprensa da Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Foi uma opção por um ritmo mais calmo, que veio a calhar.

Tudo porque, com a página virada do que aconteceu no Pacaembu, Marisa de França finalmente realizou o sonho de ser mãe. Isabella chegou à vida da jornalista em 1999. A filha, hoje no terceiro ano de Veterinária, é seu orgulho.

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