O salto do frade

Peruano pula todos os dias de um penhasco para encenar a lenda de um suicídio por amor

Adriano Wilkson Do UOL, em Lima (Peru) Adriano Wilkson/UOL

Ali onde o Oceano Pacífico faz uma curva, e as ondas arrebentam com força nas rochas produzindo um chuvisco de água salgada, o peruano Fernando Canchari Vásquez fixa os pés na ponta de uma pedra e desafia o mar. Vestido com a túnica marrom de um franciscano, o capuz cobrindo o semblante e uma corda amarrada na cintura, ele acena para o horizonte duas vezes antes de fixar os olhos no movimento da água.

O céu está cinza como a tristeza, e um vento gelado provoca arrepios nos turistas que se reuniram para assistir ao estranho ritual. O frade espera o melhor momento para saltar. Cerca de doze metros o separam do mar gélido e revolto. Se errar o local da queda, ele pode se chocar contra as pedras e alcançar a morte ou uma tetraplegia. Por isso, ele espera.

Quando decide que o melhor momento chegou, o frade levanta os braços, toma um impulso com as pernas e se joga contra o vento. Uma turista solta um grito. O frade encontra o mar e some por menos de um segundo, perdido na espuma das ondas. E então volta a superfície. Puxa uma corda que trazia amarrada a um dos braços e começa a escalar a rocha para voltar ao alto do penhasco.

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Com água pingando pelo corpo e os pelos eriçados pelo frio, ele passa entre os turistas para recolher moedas. São quatro horas da tarde em Chorrillos, um distrito perto de Lima, e o frade acaba de executar seu quarto salto do dia. Como é inverno e há poucos turistas na região, ele se prepara para voltar para casa. Acredita que os esportes em geral e os Jogos Pan-Americanos, em particular, canalizam a atenção dos turistas para longe do entrenimento que ele proporciona. Em um verão, o frade já chegou a pular do penhasco 39 vezes no mesmo dia.

A cena se repete sem variações há 29 anos e em todos esses anos ele nunca deixou de comparecer, nem quando está doente como agora, quando um resfriado o faz espirrar entre um salto e outro.

Ao encontrar o frade tremendo de frio no alto da rocha depois de ele retornar de mais uma incursão na ressaca do Pacífico, uma questão salta à mente, irrequieta.

Por quê?

Frade ao mar

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"A primeira resposta é necessidade", o frade explica enquanto caminha na direção de um ônibus de turistas.

Conhecido na região apenas como El Fraile, Fernando conta que ainda pequeno conheceu o mar brincando com os amigos do distrito. Aprendeu a fugir das correntes que te levam para longe e a desviar das pedras que habitam as praias de areia cinza do litoral peruano.

Até que o dono de um restaurante instalado no alto do penhasco lhe ofereceu um trabalho. "Mas eu não sei ser garçom nem cozinheiro", ponderou Fernando. "Mas você consegue saltar?", rebateu o dono.

Havia já nessa época, início dos anos 90, o costume de pescadores da região saltarem do penhasco para divertir turistas. Reencenavam o ato final de uma lenda segundo a qual um frade apaixonado se suicidara ali ao ver a amada partir de barco para terras distantes. Fernando saltou a primeira vez, recolheu moedas dos frequentadores do restaurante e viu que ali poderia estar seu sustento.

A trupe é composta por outros dois saltadores, que se revezam durante o dia no controle do penhasco. O próprio restaurante, chamado El Salto del Fraile, passou a incorporar a atração em suas ações de marketing, e seus garçons oferecem mesas com "vista privilegiada para o salto" aos novos clientes.

Fernando, o decano do grupo, acabou se tornando a face pública dos saltadores, "O Frade" em pessoa, desde que veículos locais e o jornal americano "New York Times" começaram a fazer reportagens sobre a encenação. Quando uma ministra das mulheres do Peru foi almoçar no restaurante e lhe ofereceu um emprego de motorista do ministério, o frade aceitou, mas deu uma condição.

"Que fosse meio período, para que eu pudesse continuar saltando."

Quando não está pulando do penhasco, o frade está se exercitando, levando suas duas filhas de 10 e 15 anos para a escola, fazendo bicos de motorista ou vendo filmes de super-heróis na Netflix. "Saltando me sinto como um dos Vingadores", ele afirma.

Sua principal fonte de renda é tirada dali, mas, aos 49 anos, o frade sabe que não será jovem para saltar para sempre e por isso comprou um Hyundai Tucson. Quer entrar de vez no ramo do transporte particular quando o corpo não aguentar mais o impacto diário com as ondas do Pacífico. Agora precisa literalmente dar seus pulos para pagar o financiamento do automóvel.

Do alto do penhasco, contemplando diariamente a possibilidade de morrer na água, o frade já perdeu a conta de quantas vezes viu a morte em três décadas de saltos. Em um verão, uma mulher se aproximou da pedra e ficou contemplando o mar por horas. Como vestia várias camadas de roupa, um traje pesado para o calor da ocasião, o frade suspeitou da cena e avisou ao segurança do restaurante para ficar de olho na mulher.

Quando deu por si, a mulher já estava no mar aberto, afogando-se, distante de qualquer possibilidade de salvação. O frade percebeu então que ela tinha escolhido vestimentas pesadas que impedissem sua flutuação e lhe levassem mais eficientemente ao suicídio.

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Em um domingo de fevereiro de 2014, enquanto descansava após um salto, o frade ouviu banhistas chamando por ele. Uma onda havia se chocado contra a rocha e arrastado um garoto de nove anos para a turbulência do mar. Sua mãe, uma peruana chamada Karin Tapayuri, instintivamente pulou para tentar resgatá-lo. Ela estava grávida de oito meses, segundo os jornais que registraram o resgate.

O frade não hesitou e saltou, dessa vez sem cordas, para tentar salvar mãe e filho. Outros banhistas fizeram o mesmo. Depois de alguns minutos de tensão, os dois foram içados do oceano e levados ao hospital sem ferimentos graves. No dia seguinte, uma emissora de TV promoveu o encontro emocionado entre a família e o frade.

A história fez Fernando ter certeza de que seu trabalho tem valor, além do simples entretenimento.

Aqui, me sinto útil. Divirto o público e, como conheço muito bem esse lugar, posso ajudar quem estiver precisando.

Fernando Canchari Vásquez , o frade saltador

Depois de três horas de conversa intercalada com saltos do penhasco, o frade troca de roupa, veste um traje franciscano seco e me oferece uma carona até o centro de Chorrillos. No caminho, me explica como escolheu o nome de suas filhas.

"Quando minha primeira filha nasceu, minha esposa queria lhe dar o nome de Esperanza, mas eu não concordei. Fiquei um tempo pensando em um nome e vim aqui na rocha. Quando você está na rocha e olha para a frente, o que você vê? Você vê o mar e o céu. Mar y cielo. Minha filha se chama assim, Marycielo, um nome inventado."

"Quando minha segunda filha nasceu, eu pensei: 'O que existe entre o mar e o céu?' As estrelas. Minha segunda filha se chama Estrella."

O frade gosta tanto de água que acredita que em outra vida foi um peixe ou um golfinho. E assim, como se sua família fosse elementos intangíveis do mundo natural e como se os elementos intangíveis do mundo natural fossem sua família, o frade continua saltando. Como se saltar fosse tão necessário quanto respirar. E saltará até o dia em que não for mais capaz.

Se um dia tiver um filho homem, já sabe que nome lhe dará.

Ele se chamará Sol.

Adriano Wilkson/UOL Adriano Wilkson/UOL

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