Carta do piloto quando jovem

25 anos após a morte de Senna, UOL publica relato escrito aos 19 anos que mostra perfeccionismo e gratidão

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em São Paulo Gil Passareli/Folhapress

No aniversário de 25 anos da morte do piloto Ayrton Senna, o UOL Esporte publica a íntegra de um documento que revela a face terna de um ídolo nacional. Na primavera italiana de 1979, o brasileiro escreveu uma carta a seu ex-preparador de kart e grande amigo, Lucio Pascual Gascón, conhecido como "Tchê".

Nela, o adolescente Ayrton mostra sua gratidão ao amigo e a obsessão que tinha com detalhes técnicos do veículo que dirigia. O piloto se preparava para seu segundo campeonato mundial de kart, o que ele considerava o momento mais importante de sua vida. Na correspondência a Tchê, Ayrton também faz referência a seu grande rival na época, o inglês Terry Fullerton.

Escrito em letra ora cursiva ora bastão, o documento mostra a ternura adolescente e o perfeccionismo do homem que entraria para o panteão de heróis brasileiros por, mais tarde, conquistar três títulos mundiais antes de morrer tragicamente em Ímola, na Itália, aos 34 anos.

Gil Passareli/Folhapress

Milão, 16 de setembro de 1979.

Meu grande amigo Tchê,

Como vê, o tempo passa voando e estou aqui há mais de meio mês e com uma ansiedade incrível pois o momento mais importante da minha vida está chegando e você sabe o quanto é importante.

És uma pessoa que tem uma responsabilidade incrível no que diz respeito à minha vida, pois quem me pôs nesse mundo do kart foi meu pai, mas quem me colocou realmente na direção certa, quem me ensinou quase tudo que eu sei, quem me ajudou e esteve ali em todos os momentos, a pessoa que me fez chegar onde estou e que é a maior responsável por minhas glórias é você e nem imagina o quanto sou grato, mas na verdade você conseguiu conquistar um grande afeto e carinho da minha parte pois é uma pessoa extraordinária à qual estou bastante ligado. Pode acreditar em tudo isso pois é o que de mais sincero tenho para lhe dizer, "espanholo".

As coisas aqui estão bem quentes, porque o Fullerton está muito arrogante e tanto o Angelo, quanto o Aquilles estão pra explodir com o inglês, isto tudo porque, na verdade, consegui me entrosar muito bem com os italianos e com isso, naturalmente o inglês se morde de ciúmes, mas está tudo bem comigo.

[Nota da edição: os irmãos Angelo e Achille Parrilla eram os donos da equipe Parrilla, que fabricava os karts em que corriam Senna e Fullerton]

Depois de amanhã (18), partiremos de avião para o Estoril [Portugal], mas os treinos serão apenas na terça e quarta-feira, sendo que o horário e a disposição de tudo vai ser idêntica à do ano passado. Para você ter bem a ideia de tudo, basta relembrar como foi tudo no ano passado, pois praticamente copiaram o regulamento do ano passado.

Arquivo pessoal

Participei de três treinos em Parma, pois os motores estavam com um problema terrível nos anéis, que se consumiam, e tudo acabou sendo resolvido com a troca do balanceamento do virabrequim, ou seja, foi trocado o alumínio por nylon como o Parilla de tempos atrás e também aliviada aquela biela fortíssima que você conhece. Com isso, a vibração dos motores diminuiu bastante e o problema da vibração dos motores acabou resolvido.

Quanto a pneus, chegaram da Bridgestone alguns jogos de pneus especiais para cada bateria; com respeito a chassis, é o mesmo modelo do ano passado com algumas poucas alterações no caster e distância entre eixos de 1m05, pois Estoril parece ser muito veloz e, levando-se em conta que os pneus possibilitam uma velocidade maior ainda, torna-se necessário aumentar a distância entre eixos. Estamos apenas um pouco atrapalhados com carburadores pois aquele suíço que os fabrica está fazendo um grande mistério para nos vender alguns poucos carburadores, que são de importância vital (você sabe bem e não preciso explicar).

Bom, espero que tenham saído notícias nos jornais, procure comprar O Estado de S. Paulo pois estou passando notícias diretas por telefone para este jornal.

Abraços,

Ayrton.

Divulgação

O atleta que virou mito

O que torna um esportista um mito? Resultados ou números não bastam. Feitos impressionantes são necessários, assim como uma conexão fora do comum com as pessoas. O mito fala à alma delas. Ayrton Senna é reverenciado 25 anos depois de sua morte até por quem não se interessa por automobilismo ou sequer era nascido quando ele sofreu o acidente fatal.

O tricampeão é mais lembrado pela força de seu caráter do que por qualquer ultrapassagem que tenha feito. Mas por que Senna cruzou os limites do esporte?

"Para mim, ele é exemplo de valores porque tinha uma mistura que é muito difícil de se ver ao ser ao mesmo tempo muito racional, estar sempre buscando os limites, sendo muito competitivo, e ao mesmo tempo sendo humilde e tendo um coração muito grande, cheio de generosidade", explica Bianca Senna, sobrinha do tricampeão e chefe de branding do Instituto Ayrton Senna. "Conheço pouquíssimas pessoas que são assim, que têm dois lados que, à primeira vista, são opostos".

Bianca dá como exemplo a reação do tio quando ele venceu, pela primeira vez, o GP do Brasil. Trata-se de uma das corridas mais emblemáticas de sua carreira, na qual Senna foi perdendo as marchas na parte final da prova e cruzou a linha de chegada quase sem forças.

"Quando ele venceu aquela corrida no Brasil do jeito incrível que ele conseguiu, a primeira coisa que ele fez foi agradecer a Deus porque ele atribuiu a Ele aquela vitória. Se ele não tivesse conseguido lidar com aquela situação, a vitória não teria acontecido."

Jorge Araújo/Folhapress Jorge Araújo/Folhapress
Pascal Rondeau/Allsport

Legado para jovens pilotos atuais

Com tudo isso, o legado de Senna permanece vivo por gerações. Os traços marcantes de seu caráter o fizeram ser considerado por muitos até hoje a maior lenda do automobilismo.

Prova disso é o respeito nutrido até por quem nem o viu correr. No grid atual da Fórmula 1, metade dos 20 pilotos nasceram depois de 1º de maio de 1994. Ainda assim, Charles Leclerc, de 21 anos, considera Senna seu grande ídolo, e Pierre Gasly, mesmo sendo francês, diz gostar do brasileiro tanto quanto gosta de Alain Prost, seu grande rival.

É estranho porque, mesmo que eu nunca tenha visto o Senna correr, ele é meu ídolo no automobilismo. Ele é muito importante para mim, sempre foi minha inspiração. Meu pai era um grande fã de Ayrton, então a paixão vem dele

Charles Leclerc, 21 anos, piloto da Ferrari

Ele tinha um talento incrível que impactou fortemente no esporte. Até hoje, fala-se muito no nome dele e acho que isso diz tudo. Ele era extraordinário

Lance Stroll, 20 anos, piloto da Racing Point

Ele ultrapassou essa barreira de ser apenas um piloto. Tocou a perfeição, na minha cabeça tem a imagem de um herói, de alguém que não tinha medo. Suas atitudes eram exemplares. Ele é o meu ídolo

Sergio Sette Camara, 20 anos, piloto de testes da McLaren

Adoraria tê-lo visto correr, mas não tem a ver só com isso. Tem a ver com a mentalidade dele fora da pista: o quão duro ele trabalhava e forçava o time, e acredito que isso fica muito claro nos vídeos que você assiste sobre ele. Para mim, isso é muito importante: você tem que ter o pacote inteiro como piloto

Lando Norris, 19 anos, piloto da McLaren

Ele era especial. Uma lenda da Fórmula 1 e é meu ídolo, mesmo que eu tenha nascido depois. Vi documentários sobre ele, sua personalidade, mentalidade, caráter. Amo os dois, Senna e Alain, por motivos diferentes: Senna era genuíno, com personalidade forte, enquanto o ponto forte do Alain era a ética de trabalho. Ambos são meus ídolos

Pierre Gasly, 23 anos, piloto da Red Bull

Quando você ouve caras como o Lewis [Hamilton] falando dele, fica claro que ele teve um grande impacto nos pilotos. Mas eu não sou dessa geração, então é difícil para mim falar algo sobre. Claro que eu tenho um grande respeito, mas meu Ayrton era Michael. Eu era completamente obcecado por ele, até minha roupa de cama tinha que ser vermelha!

Alex Albon, 23 anos, piloto da Toro Rosso

Nasci na mesma semana do acidente. Mas, quando eu ouço o nome Senna, para mim significa o mesmo que muita velocidade. Pelo que ouço falar dele, ele conseguia carregar uma velocidade incrível nas curvas e também tinha uma personalidade interessante, meio incomum

Daniil Kvyat, 24 anos, piloto da Toro Rosso

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