R$ 38 milhões sem alvará

CT '6 estrelas' do Flamengo custou R$ 38 milhões e não tinha autorização dos bombeiros

Diego Salgado, Luiza Oliveira e Pedro Ivo Almeida Do UOL, em São Paulo Thiago Ribeiro/AGIF

Um CT milionário que não deveria estar funcionando?

Em 2019, os jogadores do Flamengo começaram a usar uma das instalações esportivas mais modernas do Brasil. O módulo 3 do CT Ninho do Urubu, em Vargem Grande, custou R$ 23 milhões. Somando isso aos R$ 15 milhões do módulo 2, de 2016, chega-se ao investimento de R$ 38 milhões.

Irônico que, a dez metros do luxo estava um parque de contêineres. Foi lá que, na madrugada de quinta para sexta-feira (8), um incêndio matou dez jogadores.

Por trás da tragédia estão quase dez anos de obras intermináveis, episódios hilários (como a corrida de carrinhos de golfe) e bizarros (como o goleiro Paulo Victor sendo retirado de carrinho de obras de campo), mas também um histórico legal nebuloso.

Apesar da falta de documentos alegada pela prefeitura do Rio de Janeiro, o Flamengo usa o CT desde 2011. A reportagem do UOL Esporte mostra, agora, o vai e vem de autorizações, pedidos de alvarás e ameaças de interdições que veio à tona com a Tragédia do Ninho do Urubu.

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A falta de alvará de funcionamento

Parte da rotina do Flamengo há quase uma década, o Centro de Treinamento George Helal, o Ninho do Urubu, chegou a ser notificado para interdição por falta de alvará de funcionamento. O fato ocorreu em 2012, quase dois anos depois de o time passar a treinar no local todos os dias - naquela época, estruturas provisórias já eram usadas no dia a dia, enquanto as obras de um dos módulos estavam em curso.

Na última sexta-feira, a Prefeitura do Rio de Janeiro disse que o CT não contava com alvará de aprovação dos Bombeiros e que não foi pedido licenciamento para utilizar a área do acidente como dormitório. O Município ainda informou que multou o clube 31 vezes e que "em nenhum pedido feito pelo Flamengo existe a presença de um alojamento na área em questão".

Ainda segundo a Prefeitura, há registro de pedido do alvará de funcionamento em setembro de 2017. A consulta prévia foi aceita, mas, em seguida, foram solicitados os documentos necessários para a obtenção do alvará de licença para estabelecimento. "O certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros não foi apresentado, portanto, o alvará não foi concedido", disse o comunicado.

Em 2012, o Diário Oficial do Município informou que o clube teria de arcar com uma multa caso decidisse abrir as portas do centro de treinamento. Na ocasião, o então vice-presidente de administração do clube, Cacau Cotta, explicou-se. Segundo ele, o clube tinha alvarás de licenciamento de obras, mas não de "funcionamento provisório"

Horas depois, entretanto, o Flamengo informou que havia resolvido o problema e, assim, realizou o treino normalmente. Também em janeiro de 2012, a Seop (Secretaria Municipal de Ordem Pública) informou que o Ninho do Urubu tinha sido notificado seis vezes desde 2004 por falta de alvarás. A Secretaria e o clube não especificavam quais eram os problemas.

A tragédia no Ninho do Urubu

Pedido de interdição das instalações da base

O Ninho do Urubu também foi alvo de uma ação do Ministério Público do Rio de Janeiro pelas más condições oferecidas aos atletas de base. No processo, iniciado em 2015, o MP chegou a pedir a interdição das instalações dos alojamentos.

A ação, que tinha audiência de julgamento marcada para maio deste ano, cita precariedade dos colchões e menores residindo no CT sem autorização dos pais. Trecho ao qual o UOL Esporte teve acesso também fala em dificuldades de pais no acesso e visitas aos seus filhos.

Dentre os pedidos, estão a suspensão das atividades das categorias de base do Flamengo, interdição dos alojamentos, entrega dos adolescentes aos responsáveis e a adoção de uma série de medidas, passando por saúde e educação, para melhorar a condição de vida dos menores. 

O MP-RJ chegou a comparar o Ninho do Urubu a unidades do Departamento Geral de Ações Educativas (Degase), centros de internação para menores infratores, e entidades de acolhimento. Outro alvo de críticas é a falta de educadores, além de problemas com a estrutura física. Ao longo da ação, foram determinadas diversas vistorias no local, e houve concessão de prazo para que o Flamengo sanasse as irregularidades.

Puxadinho no meio de CT milionário

O alojamento atingido pelo incêndio no Ninho do Urubu era uma espécie de puxadinho dentro de um centro de treinamento milionário, cujo investimento chegou a R$ 38 milhões em 2018. As instalações começaram a ser construídas em 2010, em módulos. O módulo 1, justamente o que pegou fogo, era formado por contêineres e fazia parte da área mais antiga do CT.

"Não é exclusividade desse local. Mas as pessoas às vezes aprovam uma planta, aí, quando vai ver, resolvem fazer puxadinho. Aumentar. A gente lamenta que as pessoas não possam fazer um planejamento adequado. É um ato final. Existe todo um procedimento. O fato de não ter a documentação não implica que não havia segurança. Muitas vezes, até existem os dispositivos de segurança, mas ainda não teve uma regularização. Adotamos várias medidas para simplificar esse processo e agilizar", afirmou o comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro e Secretário de Defesa Civil, Roberto Robadey, em entrevista à rádio BandNews.

O local destoava dos outros prédios do CT, principalmente o do terceiro módulo. São as instalações usadas, agora, pelo elenco profissional, consideradas '6 estrelas', tamanho o luxo. Ficavam a apenas dez metros dos contêineres.

Alexandre Vidal / Flamengo Alexandre Vidal / Flamengo

Essas novas instalações foram inauguradas no fim do ano passado, ainda sob a gestão do ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello, e começaram a ser usadas justamente nesta semana. O investimento foi de R$ 23 milhões para e teve a inspiração de clubes europeus. 

A área total é de 5.000m² em dois pavimentos, com um acesso independente de jogadores e comissão técnica. São 42 suítes, sendo 36 individuais e seis duplas. O espaço luxuoso e moderno ainda conta com salas de preparação física e 14 banheiras de hidroterapia, piscina, nutrição, fisiologia, departamento médico, varandas de observação, dois auditórios com capacidade para 50 pessoas cada, praça de convívio, refeitório para 70 pessoas, vestiário e rouparia. Para recepcionar quem chegar ao local, uma estátua do ídolo Zico (foto) e um busto do Maestro Júnior em um grande espelho d'água, além de toda parte visual personalizada em vermelho e preto.

O investimento pesado não foi feito apenas nos novos prédios. O módulo 2, a ala usada pelos profissionais até o ano passado, custou o alto valor de R$ 15 milhões aos cofres do clube. Inaugurada em 2016, era considerada nível 5 estrelas. Essas instalações seriam destinadas às categorias de base a partir da próxima semana. Ou seja, em poucos dias os garotos sairiam do 'puxadinho'. 

Nosso novo centro de treinamento tem o que existe de mais moderno. Vai possibilitar que o nosso atual centro de treinamento, o módulo que foi inaugurado em 2016, seja totalmente dedicado às nossas divisões de base"

Eduardo Bandeira de Mello, ex-presidente do Flamengo, em novembro passado

Reprodução

Alojamento seria desativado para virar estacionamento

O alojamento incendiado seria desativado nos próximos dias, com a migração da base para a antiga ala dos profissionais. O local estava prestes a se transformar em um estacionamento (na área vermelha da imagem) para atletas, funcionários e visitantes do centro de treinamento. O projeto do CT chegou a ser divulgado pelo Flamengo nos últimos meses. 

Ricardo Ramos/VIPCOMM

Área de contêineres foi criada em 2011, com Luxemburgo

A inauguração das novas áreas era uma parte da transformação que ocorre desde 2010 no espaço localizado em Vargem Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. A chegada do técnico Vanderlei Luxemburgo ao Flamengo, em outubro de 2010, foi um divisor de águas para o centro de treinamento. Sob seu comando, o time passou a usar o Ninho de Urubu com frequência, deixando de vez as instalações do clube social, na Gávea.

Antes disso, os treinos no local eram esporádicos - isso aconteceu nas finais da Copa do Brasil, em 2006, quando Nei Franco comandou a equipe, e na reta final do Brasileirão 2009, com o técnico Andrade.

O projeto audacioso do centro de treinamento, que tinha o diretor de patrimônio Alexandre Wrobel no comando, chegou a ser um dos motivos para que Luxemburgo aceitasse a proposta do clube rubro-negro. O treinador encarava a construção como uma das metas do trabalho à frente do time. A situação inicial, porém, era precária, como a foto abaixo mostra.

Rodrigo Paradella/ UOL Rodrigo Paradella/ UOL

Com a ida do time profissional para o Ninho do Urubu, o Flamengo teve de tomar medidas a fim de implantar melhorias no local. Para receber os jogadores, instalações provisórias foram colocadas no local. Os atletas usavam contêineres como vestiário e tinham apenas um campo à disposição.

"O Vanderlei na época pediu para tirar os treinos da Gávea e levar para o Ninho do Urubu. A Patrícia [Amorim, então presidente] atendeu e improvisou tudo. Ela montou um CT improvisado. Arrumaram contêineres, fizeram tudo, departamento médico, refeitório e tudo mais. Depois, ela iniciou a construção", lembrou Antônio Mello, preparador físico da comissão de Luxemburgo.

A obra, porém, atrasou, mesmo com as campanhas do clube em busca de dinheiro. Os trabalhos chegaram a ficar paralisados por dois anos. Por isso, a entrega do segundo módulo, prometida para junho de 2012, só aconteceu mais de quatro anos depois, no fim de 2016. Dois anos depois, o alojamento destinado aos jogadores profissionais foi inaugurado pelo Flamengo.

Reprodução

Problemas estruturais: goleiro é transportado em carrinho de obra

O Ninho do Urubu sempre apresentou problemas estruturais. Em alguns momentos, parecia um canteiro de obras intermináveis. A cena clássica que expôs a precariedade do local foi o goleiro Paulo Victor sendo transportado em um carrinho de obras após sofrer uma fratura durante um treino, em junho de 2015.

Na época, o clube possuía quatro carros com maca no Ninho. O problema é que três deles foram levados para conserto e não estavam no CT. O único disponível no local de treinos estava em manutenção no dia em que o goleiro se machucou - ele sofreu uma fratura na fíbula.

Se a imagem do goleiro titular do Flamengo carregado em um carrinho de obras foi impactante, o procedimento não colocou em risco a saúde do jogador. Segundo o chefe do departamento médico do Flamengo. José Luiz Runco, a atitude tomada pelo profissional que estava no treino - Dr. Márcio Tannure - foi a mais adequada para a realidade enfrentada no momento.

Alexandre Vidal - Fla Imagem

Faltou estrutura para receber Ronaldinho e Adriano

A falta de espaço também se tornou um problema na chegada de Ronaldinho Gaúcho, em 2011, e no retorno de Adriano, em 2012. A apresentação do Imperador aconteceu dentro de um dos contêiners do CT. Não havia espaço para todos os jornalistas presentes, o que gerou tumulto. Apenas cinegrafistas e fotógrafos puderam acompanhar o início da entrevista coletiva. Repórteres de sites e jornais foram impedidos de entrar na sala de imprensa e perderam os 20 minutos iniciais.

No ano anterior, o acerto do Flamengo com Ronaldinho já havia feito o clube mexer no projeto das estruturas provisórias do Ninho do Urubu. A alteração ocorreu porque o espaço destinado à imprensa também não comportava todos os jornalistas. Com a chegada do astro, o número de profissionais aumentou e forçou a diretoria a aumentar o espaço no centro de treinamento - o que foi feito acoplando um novo contêiner ao que já existia no local.

À época, as obras dos dois módulos que hoje fazem parte do centro de treinamento ainda estavam no papel. Somente três meses depois a pedra fundamental foi lançada e o primeiro prédio começou a ser erguido.

No dia 17 de maio de 2011, jogadores e integrantes da comissão técnica do time rubro-negro começaram a utilizar todas as estruturas provisórias instaladas, incluindo refeitórios e quartos. Antes, o grupo apenas treinava no único campo do CT e ainda mantinham o hábito de se concentrar em hotéis. Além de Ronaldinho, Thiago Neves fazia parte do elenco do Flamengo naquela temporada.

Quem também passou por lá

Hoje no Grêmio, Felipe Vizeu viveu bons momentos no Ninho do Urubu. Ele chegou ao clube em 2013 e jogou na base até 2016. Conquistou a Copa São Paulo de futebol júnior, subiu para o profissional e foi transferido para a Udinese antes de voltar ao Brasil para atuar no time gaúcho neste ano.

"É triste. Eu vivi muito tempo lá, estou emocionado, é difícil. Sei do sonho que a gente tem, de um menino chegar aos profissionais, realizar o sonho, ficar longe dos familiares. E não conseguir realizar o sonho. Quando você tenta e não consegue, sempre tem a frustração. Mas ser interrompido é difícil. Morei muito tempo no mesmo lugar, sempre vivi muito bem lá, mas é lamentável", disse o atacante em entrevista coletiva concedida na última sexta-feira (8).

O atacante Negueba, outro jogador revelado nas categorias de base do Flamengo, também passou por momentos marcantes no Ninho do Urubu, já como atleta profissional. Em 2012, ele, o meia Renato Abreu e o volante Luiz Antônio fizeram uma corrida com carrinhos de golfe no estacionamento do centro de treinamento. Na cena, que arrancou risos de funcionários do local e até de outros jogadores, é possível ver algumas estruturas provisórias do Ninho do Urubu.

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