Aos 13

Eu faria de tudo para ser campeã no judô. Até ser estuprada pelo meu técnico

Megan Sutton-Kirkby Especial para o UOL, em São Paulo

Alerta de gatilho: esse texto aborda temas como estupro e violência sexual.

Quando eu tinha 13 anos, meu professor de judô colocou na minha cabeça que eu poderia chegar à Olimpíada do Rio. Era 2011, e eu dividia meus dias entre a escola e o tatame. Eu treinava desde os oito anos e logo me destaquei como uma das melhores lutadoras da minha idade na academia, um lugar com aparência antiga perto da estação Santa Cruz do metrô, na zona sul de São Paulo.

Eu tinha começado a treinar apenas porque minha mãe achava que era bom para uma criança praticar um esporte, mas logo meu professor começou a aguçar meu senso de competitividade.

Naquela época eu via no meu professor um exemplo de atleta. Ele era faixa-preta, disputava campeonatos e nos ensinava os fundamentos do esporte e da vida. Sob orientação dele, eu faria de tudo para me tornar uma lutadora de elite. Treinava duro para os torneios, ignorava a dor, fazia dietas restritivas e comia gelo para não engordar e estourar o limite de peso da minha categoria.

Isso era o meu normal. Mas até hoje me culpo por não ter percebido quando as coisas começaram a ficar estranhas.

DiVasca

Um dia no treino ele montou uma flor com a faixa do meu quimono e me deu de presente. Fiquei um pouco constrangida, mas não falei nada. Na preparação para uma luta, depois que eu tinha perdido muito peso para entrar na minha categoria, ele se aproximou e disse que eu estava gostosa. Ele costumava entrar no vestiário feminino sem motivo enquanto nós estávamos nos trocando e nos roubava selinhos. Se alguém protestava, ele fazia parecer que era tudo brincadeira.

Outra brincadeira: quando aparecia um menino bonito na academia e eu comentava isso com o pessoal, ele ficava sabendo e fazia uma ceninha de ciúmes. A gente ria. Parecia apenas um pai superprotetor zelando pela filha. Depois pareceu outra coisa.

Durante um treino aberto para os pais dos alunos, ele me puxou para um canto do tatame. Ele tinha tanta técnica que podia me colocar na posição que quisesse. Depois de uma rolagem, enfiou a língua na minha boca, um arremedo de beijo, violento e desengonçado. Minha mãe estava ali do lado, mas não viu nada.

Quando penso hoje naqueles dias de treino intenso, lembro de amarrar com força a faixa na cintura para impedi-lo de colocar a mão por baixo do quimono e me tocar, o que ele também já tinha começado a fazer.

DiVasca DiVasca

Agora você pode estar se perguntando por que eu não gritei depois do primeiro beijo roubado, por que não fiz uma denúncia quando ele passou a mão pela primeira vez? Eu fiquei me perguntando a mesma coisa nos últimos anos. A verdade é que não tenho uma resposta. Por um lado, esse tipo de coisa me incomodava, por outro eu secretamente me sentia querida. Ele era legal e me tratava bem na maior parte do tempo. Eu achava que do lado dele eu poderia conquistar o mundo, que era o que eu merecia. E eu tinha 13 anos.

Reprodução

Um dia postei no Facebook um vídeo tocando "Everything", do Michael Bublé, no piano de casa. A gente costumava conversar sobre música no chat. Segundo o histórico do Facebook, as seguintes mensagens foram enviadas entre setembro e dezembro de 2011. Meu professor tinha 36 anos, era casado e tinha dois filhos.

Professor
Tem uma música que acabei de postar em meu Face que é p vc.
Bjs minha Linda

Professor
Eu quero pedaço do bolo viu! Rss
Apesar de ter dado os parabéns por msg, não to satisfeito embora só ficaria msm dando pessoalmente, mas... Parabéns novamente Linda!!!
Bjs e ate 3a.

Professor
Queria que tivesse sido só p mim a música e nao p face inteiro [emoji triste] *sei q é egoísmo* ou pelo menos dedicada, isso me deixaria mais feliz ainda!!!
Rsss
Mas ficou linda, brigadinho pelo esforço.
Bjs Linda.

Megan Sutton-Kirkby
eu até ia dedicar... mas sei lá, ia ficar mt na cara, não sei. Agnt precisa conversar sobre aquele dia que os meninos foram comer no puleiro e agnt ficou na academia. Minha mãe mandou postar no face, pq ela queria que o resto da minha família me visse tocando. Se não fosse por isso eu mandava só pra vc. Mas quero que saiba que essa música eu dedico pra vc e mais ngm.

***

O print screen dessa conversa está nos autos do processo que mais tarde o Ministério Público abriria contra meu professor. Eu achava que naquele dia na academia eu tinha ficado com ele. A verdade é que eu fui estuprada.

Na academia, as portas fechadas

Assim começou o estupro. Já tinha meses que ele insistia em sair comigo. Chegou a me convidar ao cinema e prometeu me levar para jantar e me dar flores. A gente se beijava escondido, e como ele era casado, eu sabia que aquilo era muito errado. Ele escreveu uma carta dizendo que era homem, que tinha desejos, e que não podia ficar só no beijo. Que queria mais. Disse que estava apaixonado por mim. Eu respondi que não podia. Ele, sendo pai de família e mestre da academia, jamais poderia fazer aquilo. Ele seria preso.

Pesquisei na internet e descobri que a lei tinha passado a tratar a relação sexual com menores de 14 anos como estupro de vulnerável, independentemente de ter ou não consentimento. Alertei meu professor. Ele respondeu que a lei não era importante diante da minha felicidade. E eu tinha que fazer o que me deixava feliz.

Um dia, quando a minha mãe não poderia me buscar na academia, ela pediu para o meu técnico que me desse carona. Depois do treino ele fechou as portas. Era por volta das 22h. Os meninos foram comer pizza, e eu entrei no carro porque ele me levaria para casa. Deu uma volta de carro no quarteirão e parou no mesmo lugar. Reabriu a academia. No escuro, tirou a minha roupa e me jogou no tatame. E lá mesmo, me comeu. É estranho me lembrar dessa cena. É como se não tivesse acontecido comigo, como se eu estivesse apenas observando. Não senti dor nem prazer. Estava assustada. Só isso.

Não foi só uma vez. Ele me estuprou outras quatro, cinco vezes. Na época eu não via como estupro. Ele nunca me violentou fisicamente, mas me seduziu para que eu fizesse tudo que ele queria. Eu acreditava mesmo que era única. Ele dizia que eu já era mulher. Uma mulher de 13 anos. Eu não sentia amor, nem atração, nem química. Era só o meu desejo de não decepcionar meu professor, de deixar o meu técnico orgulhoso. Tentei pedir que parássemos com aquilo porque era errado, mas não paramos.

Até que minha mãe descobriu. Ela viu aquela conversa que tive com ele e outras com um amigo para quem eu confessava o caso com meu professor. Minha mãe fez o que qualquer mãe faria: um escândalo. Reuniu os mestres da academia e a mulher do meu professor, o meu professor e eu, e contou para todos que ele estava fazendo sexo comigo. Eu fiquei desesperada, me joguei no chão, chorei, quis morrer. Odiei minha mãe por aquilo. Tudo que eu queria era treinar judô com meus amigos e quem sabe ser campeã mundial. E aquela denúncia estava acabando com o meu sonho.

Ali, cheia de vergonha e ódio, gritei que era tudo mentira, que nunca tinha acontecido nada e que minha mãe estava inventando aquela história. A mentira livrou meu professor de ser punido. Eu e minha mãe saímos como loucas e problemáticas. Eu parei de treinar com ele, mas antes de sair da equipe, descobri que ele vinha transando com ao menos cinco outras alunas.

Minha mãe me levou à delegacia, onde prestamos uma queixa formal contra meu professor. Lembro de ter ouvido da escrivã uma frase que me marcou. Ela disse: "Você sabe que foi iludida e ilusão não é crime."

Saí de lá e fiquei meses sem treinar. Tentei retomar a rotina. Fiz um teste e fui aprovada no clube Pinheiros, onde cheguei a treinar com (e derrubar) meninas que mais tarde seriam da seleção brasileira de judô. Mas o esporte já não me fazia bem e eu não parava de lembrar do que meu antigo professor tinha feito. Cheguei a me classificar para o Campeonato Paulista, mas desisti de competir. Me joguei contra uma parede do clube até romper um ligamento do ombro - autossabotagem, aprendi depois na terapia.

Eu me culpava pela vida de merda que eu tinha, culpava minha mãe por ter me colocado naquela situação. Depois que saí do judô, li emails dela e descobri que ela teve um breve relacionamento com meu professor quando eu tinha perto de sete anos, antes de eu entrar na academia dele. Desenvolvi um comportamento promíscuo, como se o sexo pudesse limpar a sujeira que eu tinha me tornado. Um dia disse para minha mãe que era isso mesmo que eu era: uma prostituta. Em outro dia, fui até o viaduto Jabaquara, que passa por cima da avenida dos Bandeirantes. Pensei em pular, mas desisti na última hora e voltei para casa.

No tribunal, abandonada

Um ano depois de ter sido estuprada comecei a perceber que eu não conseguiria ser uma atleta de elite no judô. Passei a me dedicar mais aos estudos, consegui uma bolsa para fazer um intercâmbio na Alemanha. Na volta, passei a treinar em uma academia de jiu-jitsu e vislumbrei novamente um futuro como atleta profissional. Em outro esporte, acumulei medalhas e consegui patrocínios.

Enquanto isso, o processo criminal contra meu antigo professor, aberto em 2012, caminhava lentamente. Eu tinha uma senha eletrônica com a qual entrava no sistema do tribunal de Justiça com uma obsessão quase religiosa, esperando por uma condenação que aplacasse meu desejo por justiça.

Ao longo do processo, eu não pude apresentar aos juízes testemunhas que pudessem atestar a culpa do meu professor. Eu não tinha dinheiro para contratar um advogado para atuar como assistente de acusação do Ministério Público, então virei apenas um detalhe na batalha jurídica entre as partes. A vítima. Me senti como uma simples passageira no ônibus que deveria me levar à justiça, mas que me deixou sozinha no meio de lugar nenhum.

Em julho de 2017, meu professor foi condenado em primeira instância por estupro de vulnerável. Ele pegaria dez anos de prisão, mas recorreu em liberdade. Em abril de 2018, depois que seu advogado de defesa me chamou de "sem vergonha" nos autos por usar roupas que ele considerava provocantes, meu estuprador foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O colegiado de juízes considerou que meu relato era impreciso e que eu não era vulnerável, condição para o crime de estupro de vulnerável. Sem me consultar, o Ministério Público desistiu de recorrer. Em maio, seis anos depois da denúncia, a sentença transitou em julgado.

Absolvido, considerado inocente por desembargadores que nunca ouviram o que eu tinha a dizer, meu professor também me tirou o direito de pronunciar o nome dele. Por temor de possíveis consequências jurídicas, manterei meu professor anônimo neste texto. Mas ele sabe o que fez. Nós sabemos.

DiVasca DiVasca

Na escola, as portas abertas

Aos poucos entendi que minha realização poderia estar no magistério. No ano passado, entrei na faculdade de história para me tornar professora.

Quando comecei a dar aulas em uma escola, meu maior medo era sobre a minha reação ao conversar com meninas mais novas. Alguns traumas são para sempre. Hoje com 21 anos, estudando na Universidade de São Paulo, não tenho mais nenhuma aspiração olímpica e já aprendi alguma coisa na estrada que me trouxe até aqui. Mas algo daquela atleta de 13 anos sobrevive dentro de mim.

Uma das minhas alunas me procurou contando que estava passando por problemas em casa e que tinha pensado sobre a possibilidade de tirar a própria vida. Era esse tipo de coisa que passava na cabeça dela. Quantas meninas se sentem como ela? Eu fiquei em choque. Vi nela um pouco do drama que eu mesma vivi no começo da minha adolescência. Quantas como nós?

Você pode estar se perguntando por que falar de tudo isso agora. Por que tirar do armário esses fantasmas que me assombraram durante anos? Por que apontar o dedo para uma pessoa que o sistema judiciário brasileiro isentou de qualquer culpa? Acontece que certas histórias precisam ser contadas, ou tendem a se repetir sob o manto de um silêncio cúmplice.

Precisamos apoiar e oferecer suporte a meninas que sofreram ou sofrem abuso sexual e conversar sobre isso nas escolas, nas academias, nos clubes, nos vestiários, para que histórias como a minha não voltem a acontecer. É isso que eu vou fazer agora.

E o meu antigo professor, faixa-preta de judô, cujos desejos de homem um dia foram mais importantes do que meus sonhos de adolescente, o que ele estará fazendo agora?

A defesa do professor

Absolvido por unanimidade em segunda instância, o professor de judô acusado de estupro pela estudante Megan Sutton-Kirkby afirma ser inocente. Ele diz ter a consciência tranquila e continua dando aulas, segundo Roberto Vasconcelos da Gama, advogado que fez sua defesa na Justiça. De acordo com o defensor, o faixa-preta de judô nunca teve relacionamento amoroso com Megan, que teria construído seu relato "fantasioso" por "revanche pelo relacionamento que o professor teve com a mãe."

"A menina gostava dele e se sentiu preterida. O que houve ali foi uma revanche que a levou a construir uma fantasia, própria de adolescentes", afirmou o advogado, professor de direito processual penal. "Os depoimentos em juízo vão no mesmo sentido, que ela ia para a academia com o corpo à mostra, de biquíni, para provocar o professor e dar em cima do cara. Mas ele mesmo assim não se sujeitou."

Na sentença de segunda instância, o relator Aberto Anderson Filho afirmou que analisou apenas a alegação de que o réu teria tido "conjunção carnal com a menor" e não levou em conta as mensagens trocadas entre eles. O magistrado colocou em dúvida a precisão do relato de Megan e afirmou que, durante o processo, a estudante apresentou diferentes versões a respeito das datas em que o crime teria ocorrido.

O magistrado também questionou a vulnerabilidade de Megan aos 13 anos. "Sem qualquer segurança acerca da data que, se é que houve, [t]eria acontecido a primeira relação entre réu e vítima, não há como afirma[r] de forma categórica que tenha se consumado o crime de estupro de vulnerável. Para condenar alguém é imperativo que a prova seja segura, firme, estreme de dúvida", sentenciou o juiz.

O professor foi absolvido em abril de 2018. Em maio, o processo transitou em julgado, afastando qualquer possibilidade de recurso.

Você já passou por uma situação como essa? Conhece mulheres que tenham sofrido alguma forma de abuso em academias de luta? Compartilhe a sua história com a #QueroLutarEmPaz e divulgue a série Vozes no Tatame do @UOLEsporte.

Vozes no Tatame

Este é o primeiro capítulo da série "Vozes no Tatame", do UOL Esporte. São relatos em primeira pessoa de mulheres, entre atletas e ex-atletas, que sofreram violência de gênero e abuso sexual enquanto praticavam artes marciais.

A reportagem entrou em contato com mulheres que praticaram esportes como judô e jiu-jitsu e sofreram agressões ou estupros por outros atletas. Todos os acusados são faixa-preta de seus esportes

"Vozes no Tatame" tem três capítulos que serão publicados às quartas-feiras entre 14 e 28 de agosto.

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