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Regras, viúvas e 'terremoto': como é a onda gigante que Maya Gabeira surfou

A onda gigante surfada por Maya Gabeira na Nazaré, que pode fazê-la entrar no Guiness  - Bruno Aleixo/Divulgação
A onda gigante surfada por Maya Gabeira na Nazaré, que pode fazê-la entrar no Guiness Imagem: Bruno Aleixo/Divulgação

Marcus Alves

Colaboração para o UOL, na Nazaré (POR)

29/01/2018 04h00

Logo que se chega à Praia do Norte, no acesso pela areia, uma placa recebe os visitantes com um recado sucinto na Nazaré, cidade litorânea a 120 km de Lisboa, em Portugal.

"Respeite os locais ou vá para casa", pede o texto, que tem cinco regras a serem seguidas:

  • - O surfista que vem de trás nem sempre terá a prioridade
  • - É proibido fazer tow-in (surfe rebocado por jet ski) com ondas abaixo de 4 m
  • - Os carros têm de ser estacionados corretamente
  • - Deve-se levar o lixo embora
  • - As fotos e vídeos feitos de surfistas nativos precisam ser repassados a eles.

“O nosso contato ser-lhes-á entregue”, escrevem sobre o último tópico, recorrendo a uma mesóclise que dá o tom do ambiente.

O UOL Esporte esteve na Nazaré para conferir o que está por trás do fascínio que acompanha a Praia do Norte e suas ondas gigantes. Na última quinta-feira (18), em um swell (ondulação) épico, a brasileira Maya Gabeira pode ter selado a sua entrada no Guinness Book - seria a primeira surfista mulher a conseguir o feito. No mesmo lugar em que sofreu um grave acidente e quase perdeu a vida, em 2013, ela pegou uma onda que pode ter chegado a mais de 24 metros – ou, se preferir, um prédio de sete andares.

A partir de agora, Maya dará entrada no processo de medição para tentar que a marca seja oficialmente registrada.

Foram mais de três horas dentro do mar congelante até que uma onda de esquerda, enfim, despontou no horizonte. Auxiliada pelo surfista franco-brasileiro Eric Ribiere, Maya conseguiu dropar e completá-la, domando o mundialmente famoso Canhão da Nazaré, ondas que, segundo os habitantes da pitoresca cidade, têm o impacto de um terremoto.

"Quando elas quebram, é como se a Terra tremesse debaixo do seu pé", sorri Orlando Rodrigues. Maya, naturalmente, não poderia se conter em si após a façanha. "Foi um dia especial, pois seria a primeira vez que eu via ondas tão grandes na Nazaré depois do meu acidente, em 2013. Tudo apontava para um dia histórico de surfe, e eu estava bem preparada. O surfe aqui em ondas gigantes sempre envolve bastante tensão nesse dia frio e paciência também. Depois de três horas e meia na água, o Eric Rebiere, meu piloto, encontrou a onda que procurávamos e fico muito feliz de tê-la completado”, conta, em entrevista ao UOL Esporte.

"A expectativa é grande, sempre foi o meu maior sonho entrar para o Guinness e registrar o recorde feminino que ainda não existe no livro dos recordes", prossegue.

Uma onda que vale quase R$ 60 milhões

Placa Nazaré - Marcus Alves/UOL Esporte - Marcus Alves/UOL Esporte
As regras que Nazaré impõe aos surfistas visitantes
Imagem: Marcus Alves/UOL Esporte

Nazaré é dividida entre a parte baixa e alta da cidade. Para se chegar ao seu principal cartão postal, a Praia do Norte, um dos caminhos é pela estrada que se encerra em suas areias. Ou, então, descendo o penhasco que leva ao Forte de São Miguel Arcanjo, que funciona, na prática, como uma verdadeira arquibancada quando o mar sobe, as ondas gigantes aparecem e os surfistas, enfim, se lançam.

Em sua maioria, eles se refugiam em motorhomes que ficam espalhados nos arredores, no aguardo das ondulações grandes, e que têm de obedecer às regras anteriormente mostradas, como estacionar de forma correta. Maya Gabeira passa mais de seis meses nessa perseguição compartilhada pelas ondas.

“Eu moro na Nazaré de setembro a março e fico treinando aqui direto. Quando o swell está para entrar, rola a ansiedade e todos os preparativos, mas pelo menos estou dormindo na minha cama e, assim, fico mais confortável para enfrentar essas ondas. Eu me sinto em casa na Nazaré”, explica a surfista, uma das homenageadas em um pequeno museu dentro do Forte de São Miguel e cuja entrada sai por 1 euro (R$ 3,90).

Uma vila de pescadores antes pacata, Nazaré hoje atrai turistas, sobretudo, no interno, por causa de sua onda gigante. Somente nos últimos quatro anos, conforme dados aos quais a reportagem teve acesso, 400 mil pessoas visitaram, por exemplo, o Forte de São Miguel Arcanjo. O ascensor que transporta da parte baixa para a alta do município foi utilizado por 946 mil visitantes em 2017.

Ao todo, estima-se um faturamento de 15 milhões de euros (R$ 58 milhões) diretamente com o atrativo.

Luto eterno

Estátua em Nazaré - Marcus Alves/UOL Esporte - Marcus Alves/UOL Esporte
A polêmica estátua do surfista com cabeça de veado na Nazaré
Imagem: Marcus Alves/UOL Esporte

Ao se caminhar por suas ruas estreitas, um detalhe chama a atenção: a presença de diversas senhoras vestidas de preto dos pés à cabeça. Essas são as “viúvas da Nazaré”, que perderam os seus maridos, em sua maior parte, pescadores, para o mar agitado e, a partir de então, prometeram não usar mais qualquer cor pelo resto de suas vidas.

Essa é apenas uma das tradições que dão um ar bucólico para a cidade repleta de gaivotas e que passou a atrair turistas desde que o havaiano Garrett McNamara a descobriu e colocou no mapa, cerca de dez anos atrás. Ele detém o recorde masculino de maior onda surfada, com uma "bomba" de 23,8 metros, na Praia do Norte, em 2011.

Na expectativa de fazer companhia a McNamara entre as mulheres, Maya Gabeira, praticamente uma local, ressalta a mudança na Nazaré.

“Nossa, desde 2013 mudou muito. Na minha primeira vez aqui, a cidade não tinha movimento no inverno, o cliff (penhasco) ainda não lotava de público para ver as ondas e a cidade não tinha muitos jovens. Hoje em dia, tem grande turismo, o cliff está sempre cheio, mesmo em dias normais, e a cidade está mais alegre, movimentada e jovem”, comenta.

Além das ondas gigantes, somente uma controvérsia agita as calmas ruas da Nazaré.

No caminho para o Forte de São Miguel Arcanjo, foi colocada em 2016 uma estátua de um surfista com uma cabeça de veado que provoca polêmica por causa de sua estética e virou até mesmo chacota. Ela faz alusão ao milagre que, em 1182, teria evitado que Dom Fuas Roupinho, nobre guerreiro português, morresse no penhasco em uma caçada a veados. Os moradores da região rebatem que a peça de seis metros e 11 toneladas não representa a lenda nem tampouco as ondas.