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Irmã de Laerte controla desordem bipolar com levantamento de peso e vira recordista mundial

Marília Coutinho é recordista mundial na modalidade conhecida como powerlifting - Leandro Moraes/UOL
Marília Coutinho é recordista mundial na modalidade conhecida como powerlifting Imagem: Leandro Moraes/UOL

Bruno Freitas

Do UOL, em São Paulo

25/10/2012 06h00

Marilia Coutinho carrega sobre as barras que sustenta muito mais que a carga que a tornou recordista mundial no powerlifting, uma vertente não-olímpica do levantamento de peso. A brasileira encontrou no esporte um caminho para dominar uma grave desordem bipolar que ameaçou sua vida. De quebra, aos 49 anos, conseguiu um status de atleta de ponta que desafia qualquer teoria sobre atividade física no amadurecimento, competindo de igual para igual com adversárias mais novas.

O UOL Esporte encontrou Marilia Coutinho em uma tarde de treinamento numa academia na Zona Oeste de São Paulo, na fase final de preparação da atleta para uma série de eventos nos Estados Unidos nas próximas semanas. Com uma das mãos machucada, em decorrência de um acidente de treino, a atleta lapidava sua técnica distante dos 175 kg que a fez recordista mundial absoluto [entre todas as idades] no agachamento, entre todas as federações existentes no powerlifting.  

Marília fala sem constrangimento sobre sua batalha pessoal contra a desordem bipolar, em experiência que trabalha para transformar em livro. Em 2005, ainda sem encontrar um modelo de vida que lhe servisse, a então acadêmica ph.D em Biologia teve sorte de sobreviver a uma tentativa de suicídio. No ano seguinte, descobriu o levantamento de peso ao entrar numa academia do bairro pobre de Paraisópolis, em São Paulo, numa guinada que adiante a colocaria em posição de comando sobre a doença [conhecida pelas variações bruscas de humor].

AFINIDADE IDEOLÓGICA COM O
IRMÃO, O CARTUNISTA LAERTE

A levantadora de peso Marilia Coutinho é a mais nova de quatro irmãos de uma família que conta com o cartunista Laerte. O criador do "Piratas do Tietê" recentemente adotou a prática do crossdressing, termo que se refere a pessoas que vestem roupa ou usam objetos associados ao sexo oposto, e inspirou a incompreensão de gente que já conhecia sua trajetória nas ilustrações.

Marilia conta que é bastante solicitada para falar com o irmão em debates sobre a questão da expressão corporal, seja em fóruns acadêmicos ou entrevistas.

"Corpo como sede de conflito social. Eu e o Laerte temos um discurso muito parecido sobre isso", relata.

"Nada cura esse tipo de doença. Seria uma mentira se falasse isso para as pessoas", diz Marilia, em menção ao livro que está preparando sobre a influência do esporte em casos do gênero, de título "Força contra a morte".

"[A doença] tem elementos de estresse pós-trauma, tem elementos de epilepsia, ninguém tem um diagnóstico fechado. O que se sabe é que o que eu tenho é muito grave. Pode ser que seja uma forma de desordem bipolar, mas é um pouco mais grave do que as formas conhecidas. Não tem cura, tem controle. Mais do que isso, tem a possibilidade de ser feliz", acrescenta.

Na infância, Marília Coutinho chegou a se dedicar à esgrima, com conquista de títulos juvenis, em momento que descreve como um dos únicos em que encontrou paz.

Em seguida, na adolescência, a paulista se engajou em movimentos de esquerda contra a ditadura vigente no país e chegou a sofrer violência de companheiros. Os incidentes, em sua interpretação, geraram um estado de alienação corporal que contribuíram para o quadro de bipolaridade.

DESAFIOS CONTRA MITOS DOS ESPORTES

Existe uma visão social corriqueira que geralmente olha para os atletas de esportes de força de uma forma limitadora. Com uma bagagem intelectual privilegiada e competindo no auge físico perto dos 50 anos, Marilia Coutinho admite que serve como um "estudo de caso" para desafiar o rótulo tradicional que paira sobre seus colegas de levantamento de peso e demais modalidades do segmento.

"Eu tenho 49 anos. Segundo o livrinho, eu não posso usar cabelo comprido, eu tenho que ter uma vida sexual não muito ativa, eu não posso usar piercing, eu não posso ser muito forte, eu teria que abrir mão de uma série de coisas que seriam específicas de cada idade. Assim como um adolescente tem o direito de ser 'porra louca', irresponsável. Existem os dois lados da coisa, talvez uma condescendência exagerada com os jovens, e uma estereotipação absolutamente opressiva durante o amadurecimento", diz Marilia.

  • Reprodução

    Marilia cita a norte-americana Becca Swanson como exemplo de sucesso esportivo e intelectual: engenheira e campeã do levantamento de peso

Campeã no Mundial de Atlanta de 2011 no agachamento raw (sem equipamentos), a brasileira leva ao esporte uma trajetória acadêmica extensa, que inclui mestrado em ecologia química, doutorado em sociologia da ciência e pós-doutorado em estudos sociais da ciência.

Com esse tipo de elementos à disposição, a recordista mundial diz ter convicção sobre a relação direta entre o desenvolvimento esportivo e a capacidade intelectual. Em seus argumentos, Marilia cita as três atletas mais fortes de sua modalidade, todas com doutorado em engenharia em grandes universidades norte-americanas.    

"A Becca Swanson me falou que calculava o PSI (força por polegada quadrada) dos levantamentos terra dela. Ela achava isso divertido. Será que é coincidência ela ter feito as marcas que fez, só porque ela é grande? A força dela é em grande parte pela capacidade cognitiva de processar essa informação", afirma.

Com 60 kg, 1,52 m, 49 anos e um recorde mundial para chamar de seu, Marilia Coutinho está aí para mostrar que os rótulos convencionais do esporte podem ser desafiados: "Será que sou eu que sou diferente ou será que todos os dados é que precisam ser revistos? Eu aposto nessa segunda hipótese".