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Eles estão jogando a mesma partida de xadrez há mais de 1 ano. Pelo correio

Jorge André Pregun, à direita, enxadrista postal que mora no interior de São Paulo  - Arquivo pessoal
Jorge André Pregun, à direita, enxadrista postal que mora no interior de São Paulo Imagem: Arquivo pessoal

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

26/09/2014 06h00

Durou 53 anos a partida mais longa da história do xadrez por correspondência, essa centenária modalidade cujos movimentos das peças no tabuleiro são informados ao oponente por meio de cartas, mensageiros a cavalo, pombos-correio, telégrafo e, mais recentemente, e-mails. Naquela partida histórica que consumiu 53 anos, entre dois sul-africanos, o xeque-mate não aconteceu porque um dos jogadores morreu antes.

Para evitar inconvenientes como esse, os órgãos internacionais que regulam a modalidade criaram regras para limitar a duração de jogos. Hoje, eles podem levar até três anos. O ideal é que seja menos.

Dionísio Kiss e Jorge Pregun, dois habitantes da cidade paulista de Jundiaí, estão nesse exato momento em duas acirradas disputas contra enxadristas da Suécia. A cada 15 dias, eles recebem cartas escandinavas com códigos indicando o movimento de peças. Eles precisam reproduzir esses movimentos em um tabuleiro real ou, se quiserem, em softwares próprios pra isso. E têm dois dias para refletir sobre o movimento de resposta, escrever e enviar suas próprias cartas.

Esses duelos Brasil x Suécia começaram no meio do ano passado e não têm data para acabar. Se durarem muito tempo sem um vencedor, será designada uma comissão de três juízes para definir quem jogou melhor e quem merece os pontos pela vitória. Esses juízes também se comunicam com os jogadores apenas por cartas.

A demora é um grande problema, mas não o único inconveniente dessa modalidade, que está em vias de extinção. "O mundo mudou muito, e eu diria que em menos de dez anos, não haverá mais jogadores", cogita Pregun, de 53 anos. A comunicação por carta é mais demorada hoje em dia do que era há 30 anos, no auge da popularidade do xadrez por correspondência, epistolar ou postal, como também é conhecido. Com a invenção do e-mail, a maioria dos jogadores levou seus tabuleiros para internet e trocou suas cartas de papel por mensagens virtuais. Os mais moderninhos usam também um servidor on-line, que facilita ainda mais o jogo remoto.

Dionísio Kiss, um médico aposentado de 80 anos, relutou bastante ao fazer a migração. Depois de vinte anos jogando xadrez por carta, ele hoje usa e-mail. Mas quando encontrou um adversário sueco que só aceitava jogar pelo correio, voltou a pegar em papel e caneta, cola e selos postais, e fazer tudo como antigamente. "Eu realmente preferiria jogar ao vivo, mas o clube de xadrex da cidade abre só sábado à tarde e não posso ir sempre", afirma Dionísio.

Confusão e catimba

Em cada carta enviada, o movimento de uma peça específica é representado por números. Como em um tabuleiro de xadrez cada peça tem uma posição inicial definida, o jogador só precisa indicar, usando números, a casa de origem e a de destino do movimento. As peças em si nunca são descritas: o jogador que recebe os números deve “traduzi-los” em movimentos, a partir da posição prévia de cada torre, bispo, rei e cavalo.

Às vezes, ocorrem imensas confusões. Um erro mínimo de tradução, digamos, no segundo movimento vai gerar um efeito borboleta e um furacão no vigésimo. Em 1971, o cineasta americano Woody Allen lançou o livro Cuca Fundida, que continha uma hilariante troca de cartas entre dois enxadristas postais. Em um determinado momento, um dos jogadores se desespera: “Concluí que há seis semanas estivemos jogando duas partidas de xadrez completamente diferentes.”

No mundo real, isso também acontece, principalmente com aqueles que relutam a usar softwares auxiliares. Há também alguma catimba. Como existe um tempo definido para que uma resposta seja postada, se tornou uma estratégia comum o envio de um movimento impossível em cima do prazo para que a carta volte e o jogador espertinho tenha mais tempo para pensar.

Uma história famosa conta que um dia um jogador, vendo seu rei cada vez mais ameaçado, resolveu mandar uma carta em branco, sem movimento nenhum, para o oponente. O adversário protestou com os juízes, também por carta. Os juízes foram tirar satisfação com o primeiro homem, que respondeu (sempre pelo correio) que havia enviado sim os códigos, mas eles estavam no verso do papel, de maneira bem discreta, quase ilegível. Os juízes ordernaram que ele reenviasse o movimento em tamanho normal, mas aí o catimbeiro já tinha ganhado vários dias para pensar na melhor jogada.  

São frequentes também extravios (ou falso extravios com objetivo de catimba), atrasos e outros inconvenientes que fazem do xadrez postal uma modalidade com data para acabar. Os modernos meios de comunicação também têm jogado as últimas pás de cal nas cartas. De acordo com o Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro, os poucos jogadores ainda praticantes do sistema analógico são saudosistas ou moradores de cidades em que conexão com a internet é um luxo.

Mesmo assim, de acordo com as contas do clube, que concentra informações sobre a maioria desses jogos (tanto os por carta quanto os on-line) estão acontecendo neste momento cerca de cem partidas pelos Correios em todo Brasil. Eles consideram esse um número irrisório se comparado ao que se tinha 30 anos atrás.

Raízes

No ano de 1125, o rei da França, Luís 6º, jogou a primeira partida de xadrez por correspondência de que se tem notícia. O adversário era seu sogro, Henrique 1º, rei da Inglaterra. Os dois enviavam os lances por comissários que atravessavam constantemente o canal da Mancha. Como essa modalidade pode ser bastante confusa, até hoje não se sabe quem venceu.

Mesmo assim, o xadrez postal prosperou. Há dois tipos de pessoa para quem ele é geralmente atrativo: aqueles que moram em cidades muito pequenas e não conseguem encontrar adversários à sua altura e aqueles que não têm muito tempo para sentar na frente de um tabuleiro por horas.

Mas também há um terceiro tipo, contra o qual Jorge Pregun jogou uma partida no final dos anos 1980. Parecia só mais um jogo, mas depois de meses de cartas trocadas, o oponente pediu para que na próxima carta, Pregun enviasse também um livro qualquer pelos Correios. O motivo: o adversário morava em uma prisão e tinha pouco acesso à literatura na cadeia. De fato, o xadrez postal foi durante muito tempo uma modalidade bastante praticada por cidadãos encarcerados. Há relatos inclusive de escolas que incentivavam seus alunos a jogar por cartas com enxadristas presidiários.

Poder se relacionar com gente do mundo inteiro era um dos principais atrativos que levavam milhões de pessoas a se engajar no esporte. Pregun lembra de um de seus oponentes na década de 80, um indiano de 95 anos que, além dos movimentos das peças, lhe enviava longas cartas discorrendo sobre seu dia a dia. A partida durou cerca de cinco anos e virou apenas um pretexto para o relacionamento. Vivendo em diferentes continentes, eles nunca se encontraram pessoalmente.

"Em uma época em que as comunicações não eram tão fáceis, o xadrez postal era uma forma de fazer amigos e saber como viviam pessoas do mundo todo", contra Pregun. Não à toa, o lema dos filiados ao clube da modalidade, fundado na década de 1960, é "leva o xadrez, traz o amigo."