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Liga alternativa de rúgbi recebe atletas gays e reúne milhares de adeptos

Duelo na Bingham Cup 2016, principal torneio da IGR - Reprodução/Facebook
Duelo na Bingham Cup 2016, principal torneio da IGR
Imagem: Reprodução/Facebook

Bruno Romano

Colaboração para o UOL

12/06/2017 04h00

O rúgbi é um esporte que atrai milhares de fãs do mundo e vem enfrentando uma mudança que deve soar como novidade até mesmo para quem acompanha a modalidade há bastante tempo: já existem mais de oitenta clubes assumidamente gays pelo mundo. É este o termo escolhido pela própria International Gay Rugby (IGR), uma associação fundada oficialmente em 2002 que promove a inclusão de atletas homossexuais e defende o combate a homofobia no esporte.

Somente no ano passado, 16 novos times saíram do papel, a maioria deles nos Estados Unidos, berço da IGR e local de maior atividade da cena. Mas a história não se resume aos EUA. Países da linha de frente da ovalada, como Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e Inglaterra também possuem seus representantes. E a onda se espalha atualmente pelo segundo e terceiro escalões mundiais, sobretudo na Europa — na América do Sul não há nenhum membro ativo.

Campeões da Bingham Cup 2016, em Nashville, nos EUA - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Campeões da Bingham Cup 2016, em Nashville, nos EUA
Imagem: Reprodução/Facebook

Depois de algumas tentativas sem continuidade de se criar clubes na Inglaterra, ainda na década de 1990, o embrião da IGR começou a ganhar forma com um torneio amador disputado em Washington (EUA), em maio de 2001, envolvendo clubes locais. Na época, Mark Bingham, um ex-jogador de rúgbi da universidade da Califórnia, era tido como mentor deste ainda jovem e crescente proposta de formar clubes. Alguns meses depois, Mark faleceu nos ataques de 11 de setembro. E sua história pessoal acabou impulsionando o movimento.

Mark estava a bordo do voo 93 da United Arlines, que acabou caindo no solo do estado norte-americano da Pensilvânia, matando todas as 44 pessoas a bordo. Segundo os relatos oficiais, alguns passageiros, incluindo Mark, enfrentaram os infiltrados da Al-Qaeda, evitando que a aeronave se chocasse com algum alvo específico. Curiosamente, a tragédia se transformou em combustível para a IGR, que criou em 2002 um torneio em sua homenagem, a Bingham Cup. Disputada desde então, de dois em dois anos, é tida como a "Copa do Mundo" da IGR, levando a bandeira dos ideais da associação por onde passa.

Depois de percorrer cidades ícones do rúgbi, como Londres (2004), Dublin (2008) e Sydney (2014), o torneio chega a sua nona edição em 2018, com sede em Amsterdã, na Holanda. O lema do evento Prepare for impact ("prepare-se para o impacto", em tradução livre) indica bem a intenção da entidade, motivada a fazer barulho e trazer à tona um assunto que costuma ser tabu.

Para entender melhor toda essa história, o UOL Esporte bateu um papo com o australiano Andrew Purchas, 52, presidente da IGR a mais de uma década. Seu relato pessoal ajuda a decifrar o próprio significado da associação. A seguir, ele também responde questões polêmicas e reveladoras sobre o tema.

UOL ESPORTE: Se a ideia é promover a inclusão, por que desenvolver uma liga a parte?

ANDREW PURCHAS: A IGR concluiu recentemente um estudo bem sério e abrangente para ir mais fundo justamente neste ponto. Ele foi chamado de Out in the fields, e contou com 10 mil entrevistados, todos jogadores ou ex-atletas. A pesquisa mostra que apenas 2% dessas pessoas se sentiam totalmente bem recebidas em seus clubes. Acho que isso responde a questão, por hora. Mas temos avançado bastante neste sentido.

O exemplo de referências no rúgbi mundial que se assumiram abertamente, como Nigel Owens, árbitro da final do último Mundial, e Gareth Thomas, ícone da seleção galesa e dos British & Irish Lions, tem ajudado?

São pessoas de muita qualidade, altamente respeitadas pelo que fazem ou fizeram dentro e fora de campo. Eu enxergo duas coisas bem significativas aí. Primeiro, que exemplos com estes são fundamentais, pois trazem luz ao tema e desmistificam muita coisa. Segundo (e super importante), Nigel e Gareth comprovam que a atração sexual de uma pessoa não atrapalha absolutamente em nada a sua capacidade de arbitrar ou jogar.

Pode dividir conosco um pouco da sua história no rúgbi?

Comecei a jogar com seis anos. Eu era uma criança grande, por isso, já me destacava desde cedo. Jogava rúgbi todo fim de semana, segui praticando no colégio, na universidade de Sydney e em um clube da minha cidade, o Colleagues Rugby, atuando na equipe principal até os 30 anos. Parei de jogar depois que me assumi. A última temporada foi bem complicada, pois eu estava em um momento de enormes mudanças na minha vida. Mas, depois disso, voltei aos campos, e já são 25 anos jogando com a IGR.

Como foi esse período de transição?

Nunca sofri homofobia no rúgbi. Foi um processo mais interno meu, algo no qual eu não estava lidando muito bem. Também era uma fase diferente na minha vida, vários amigos se aposentando do time. Todas essas questões eram difíceis de lidar. E comecei a não me sentir tão parte daquele ambiente assim. Mas logo decidi que não ficaria remoendo isso dentro de mim. Pelo contrário, passaria a focar minha energia em passos positivos.

Foi nessa época que se envolveu com a IGR?

Por questões de trabalho, meu parceiro e eu nos mudamos para San Francisco, nos Estados Unidos. Ele também jogava. Encontramos um clube local que estava começando a dar voz à esta nova cena. Participamos do torneio de 2001 que ajudou a fundar a IGR. Eram apenas seis clubes naquela época, e o Mark Birgham estava lá, pouco antes do 11 de setembro daquele mesmo ano, quando ele faleceu. Depois disso, a IGR decolou. A verdade é que, no começo, não havia nenhum viés político. Era apenas uma oportunidade acolhedora para as pessoas jogarem.

Qual o tamanho da IGR hoje?

Já ultrapassamos a marca de 80 clubes. Fazendo uma média, entre 50 a 80 atletas por time, dá para ter uma ideia do número de adeptos atual. Os que tem mais gente envolvida chegam a ter quatro categorias internas.

E qual é o seu papel como presidente?

Temos uma diretora com mais outras cinco pessoas, que atuam como conselheiros. Somos registrados como uma entidade sem fins lucrativos, o que é de fato o que fazemos: somos abertos a doações e usamos todos os recursos que conseguimos para promover nosso ideal e ajudar os clubes. Todo o trabalho, incluindo o meu, é voluntário. Eu mesmo pago do bolso as viagens que faço pela IGR. Minha missão principal é coordenar a organização da Bingham Cup e dos campeonatos regionais. Além disso, trabalho em contato com a World Rugby para produzir material educacional. Em agosto, estarei Dublin [sede da World Rugby, na Irlanda] trabalhando com eles para seguir executando os planos que já assinamos em 2015 em prol da inclusão no rúgbi.

Ao se associar a IGR, os jogadores passam a jogar exclusivamente nos torneios da entidade?

Isso varia de clube a clube. A maioria dos times, aliás, joga em ligas locais contra outros que não são ligados a IGR, até pelo fato de que, desta forma, podem ter mais jogos regularmente. Nós incentivamos isso.

Em dias de jogos, há algum aspecto diferente nas partidas válidas pela IGR?

Seguimos exatamente as regras da World Rugby, e as pessoas simplesmente gostam de ser elas mesmas, desfrutando daquele momento. Bom, ok, talvez o pessoal gaste mais tempo na arrumação pós-jogo (risos). Brincadeiras à parte, há um pouco de tudo. Uns são discretos, outros mais exagerados. A verdade é que isso não importa muito. A ideia principal é justamente que cada um possa celebrar sua vida como quiser.

E como o rúgbi, como esporte, entra neste cenário?

O rúgbi tem tradições que estão acima de "apenas" um esporte. As amizades que se criam são muito fortes. Tudo se torna uma verdadeira família. É assim na IGR. Tem sido uma experiência fabulosa jogar e promover isso tudo, conhecendo pessoas de diferentes lugares do mundo. O nosso plano de causar um impacto positivo por onde passamos tem dado muito certo. Se pegarmos a Austrália, por exemplo, todos os outros esportes tradicionais como futebol, o rugby league e o críquete já assinaram recentemente acordos de inclusão no esporte por meio de suas federações. O rúgbi tem sido um exemplo neste sentido.

Existe alguma ação da IGR voltada para as mulheres?

Temos uma responsável na diretoria justamente para isso, e deixamos claro que os clubes femininos são bem-vindos. Tentamos, inclusive, reunir várias equipes femininas da última Bingham Cup, mas sem sucesso. Acontece que o assunto é um pouco diferente neste caso, pois a porcentagem de lésbicas é grande em comparação a de homossexuais, e isso muda bem a questão. É quase uma inversão em alguns casos. E, no fim, as mulheres não querem que o esporte seja focado nisso, na opção sexual. Todo mundo está vendo o incrível desenvolvimento do rúgbi feminino pelo mundo. Elas preferem que a cobertura foque exatamente no desempenho esportivo, o que é mais do que justo e coerente.

Sejam homens ou mulheres, a IGR faz alguma recomendação para atletas que procuram a entidade?

Tudo é muito pessoal, não há uma recomendação padrão. Pessoas que sirvam de exemplo em suas comunidades são importantes, mas não acredito que exista uma obrigação em se assumir. Ainda encontra-se por aí um grande potencial de problemas. Há o medo do que irá acontecer e da pressão que pode vir. A maioria ainda esconde sua sexualidade até parar de jogar. O importante é que uma coisa tem ficado bem clara, e o rúgbi ajuda muito a deixar isso mais nítido: a escolha sexual de cada um não interfere em como ela vai jogar um esporte. Isso precisa ser melhor trabalhado nas próprias instituições esportivas, nos clubes e nas associações em geral.

Neste sentido, o que você visualiza no horizonte da IGR e do rúgbi de forma geral?

Há uma melhora, claro, basta ver o que tem acontecido pelo mundo, com casamentos sendo aceitos em vários países, por exemplo. Existe um reconhecimento. Só que, no esporte, ainda é um pouco difícil de se entender. E eu considero a Austrália ainda um passo atrás neste ponto. Mas, de forma geral, o rúgbi mundial está indo em uma direção boa. Outras modalidades precisam começar a falar disso e, depois, colocar algo em prática. O próprio movimento olímpico tem de se posicionar mais firmemente e ser mais ativo. Não custa lembrar que ainda há nações onde ser gay é ilegal. O esporte pode ter um papel fundamental para mudarmos isso.