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Após 50 anos, punhos erguidos na Olimpíada de 1968 se tornaram atemporais

Arthur Sandes

Do UOL, em São Paulo

10/10/2018 04h00

O ano de 1968 foi um marco da violência em um contexto de grande simbolismo cultural e cívico. A Guerra do Vietnã, o conturbado Maio de 68 na França e a Primavera de Praga estavam nas manchetes, enquanto o movimento por direitos civis dos negros norte-americanos perdia uma de suas principais vozes, Martin  Luther King, assassinado. Neste cenário os Jogos Olímpicos daquele ano foram marcados não por recordes esportivos ou medalhas conquistadas, mas por dois punhos erguidos no pódio. Cinquenta anos depois, tal protesto nunca pareceu tão atual.

Em 16 de outubro de 1968, na Cidade do México, Tommie Smith e John Carlos levaram ouro e bronze, respectivamente, na prova dos 200m rasos. No pódio, durante o hino dos Estados Unidos, os velocistas ergueram punhos fechados com luvas pretas, o gesto inconfundível do movimento ‘Black Power’. O protesto, à época, estendeu ao esporte uma luta duramente travada há anos nos EUA — mais ou menos o que ocorre hoje, com Colin Kaepernick e Serena Williams.

A segregação racial foi regra no país até a década de 1950, quando os movimentos de resistência ao racismo ganharam mais força e frequência. Então Rosa Parks negou-se a ceder seu lugar em um ônibus do Alabama, e a luta por direitos civis cresceu de forma avassaladora. Entre as lideranças, despontaram Martin Luther King Jr. e Malcom-X, cada um com suas propostas para melhorar as condições de vida dos negros nos EUA. É a conjuntura que legitima os punhos erguidos de Tommie Smith e John Carlos.

Tommie Smith e John Carlos - John Dominis - John Dominis
Protesto de Tommie Smith e John Carlos marcou Jogos Olímpicos de 1968, no México
Imagem: John Dominis
Nos Anos 60, a sociedade nos Estados Unidos entra em colapso. A Lei dos Direitos Civis finalmente proíbe a segregação no país inteiro, e a tensão social se torna incontrolável. Malcom-X é assassinado; surgem os Panteras Negras; há a Rebelião de Detroit… Em cerca de três anos, uma série de acontecimentos entram para a história como marcos do movimento por direitos civis dos negros. Então chega 1968, e Luther King é assassinado — seis meses antes dos Jogos Olímpicos.

De certa forma, o gesto de Tommie Smith e John Carlos nos Jogos Olímpicos do México denota o envolvimento de grandes atletas no maior debate da época. “Somos negros e temos orgulho. A América Negra entende o que fizemos”, disse Smith na ocasião. Foi uma mensagem poderosa, semelhante à de Muhammad Ali, que pouco antes havia se negado a combater no Vietnã (o país não lhe havia feito mal algum, argumentara o boxeador, enquanto negros eram “tratados como cachorros, sem direitos humanos básicos” em sua cidade-natal, Lousville).

Não é difícil traçar um paralelo com a atualidade. Na NFL, há dois anos, Colin Kaepernick e Eric Reid se ajoelharam durante o hino nacional dos EUA em protesto contra a violência da abordagem policial aos negros. Tal reivindicação não é de exclusividade do século XXI, explica a historiadora Mírian Cristina de Moura Garrido, cujo mestrado é sobre o assunto. “Não está muito longe [da luta negra dos anos 60]. A reação à violência policial é justamente uma das questões que se mantém. Hoje, é como uma herança do movimento ‘Black Lives Matter’, e na época era a pauta de uma das Panteras Negras, a [filósofa] Angela Davis”, lembra, referindo-se a uma das maiores ativistas norte-americanas.

Nos anos 60, tal era a preocupação quanto à violência policial, que o próprio surgimento dos Panteras Negras se dá para proteger moradores dos bairros negros. “Eles faziam patrulhas para estar sempre por perto quando um jovem era abordado pela polícia, assim fiscalizavam a atuação dos policiais e, em caso de abusos, faziam queixas formais”, explica a historiadora.

É claro que o método de Kaepernick, atualmente sem time na NFL após ficar marcado pelos protestos, está longe da beligerância dos Panteras Negras, mas a causa tem tudo a ver com Tommie Smith e John Carlos. Em um cenário ainda muito desfavorável ao negro nos Estados Unidos, o jogador usou os holofotes que tinha para alertar para uma injustiça social — exatamente como a dupla velocista em 1968. Cinquenta anos depois, afinal, o protesto naqueles Jogos Olímpicos parece ter se tornado atemporal.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferente do informado anteriormente nesta nota, Angela Davis é uma filósofa e ativista, e não uma cantora.