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Nos anos 80, mangá "previa" 2019 e falava em Jogos Olímpicos de Tóquio-2020

Akira se passa em 2019 e conta a história de crianças com poderes em Neo-Tóquio às vésperas das Olimpíadas na cidade, em 2020; no fim da década de 80, história ganhou versão animada - Reprodução
Akira se passa em 2019 e conta a história de crianças com poderes em Neo-Tóquio às vésperas das Olimpíadas na cidade, em 2020; no fim da década de 80, história ganhou versão animada Imagem: Reprodução

Emanuel Colombari

Do UOL, em São Paulo

17/02/2019 11h00

Akira é considerado uma obra-prima dos quadrinhos japoneses. Publicado originalmente em seis volumes entre 1982 e 1990, o mangá de Katsuhiro Otomo é um dos marcos do cyberpunk japonês, unindo em seu roteiro traços de tecnologia e uma vida com escassas perspectivas de futuro para as personagens principais. Em suas cenas, não poupa o leitor de destruição e (muito) sangue.

Mas há um detalhe bastante peculiar em Akira: a história protagonizada pelos motoqueiros Tetsuo e Kaneda se passa em 2019, no Japão. E como na vida real, a trama coloca a capital japonesa como sede dos Jogos Olímpicos de 2020. Premonição?

No mangá, Tóquio é destruída em uma explosão atômica na década de 1980, dando início à III Guerra Mundial. Posteriormente reconstruída, a cidade passa a se chamar Neo-Tóquio e concentra forte aparato militar. Em 2019, as forças de segurança se confrontam com delinquentes de diversos tipos - como a gangue de Kaneda e Tetsuo.

Em determinado momento, Tetsuo sofre um acidente ao atropelar uma criança. Descobre-se então que ele tem poderes sobrenaturais, assim como a criança que foi atropelada e que faz parte de um projeto secreto do governo. Ciente disso, Tetsuo então experimenta seus poderes ao máximo, colocando-se como um vilão da história.

(Atenção: o próximo parágrafo contém spoilers do enredo!)

Capa Akira 1 - Reprodução - Reprodução
'Akira' gira em torno de crianças com poderes; história tem Tetsuo e Kaneda como protagonistas
Imagem: Reprodução

Diante do aumento do poder de Tetsuo, a história revela detalhes do tal projeto secreto. Na década de 1980, o governo japonês já monitorava secretamente as crianças com poderes paranormais. Uma delas, Akira, fugiu do controle e causou a explosão que arruinou Tóquio.

(Pronto, pode voltar!)

Na forma, trata-se de uma narrativa bastante diferente das apresentadas por outras manifestações culturais japonesas ao ocidente. No mangá, o gênero shonen é voltado para meninos (casos de títulos como Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco), enquanto o gênero shojo é voltado para meninas (casos como Sakura Card Captors e Sailor Moon). Na TV, as franquias sentai apresentam esquadrões de coloridos heróis, lutando contra monstros e sempre vencendo no fim - casos como Goggle V, Changeman, Flashman e Zyuranger, para ficar em alguns dos mais famosos.

Akira é um marco do gênero seinen, voltado para homens adultos. "A ficção científica japonesa tem uma obsessão - até pelos ataques atômicos - pela destruição. Não é uma estética dark, mas é suja. É tecnologia, mas com sensação de degradação. Então precisa ser menos caricato", explica Leo Kitsune, editor de gibis e youtuber do canal VideoQuest.

Segundo Kitsune, Akira é um contraponto hiperdetalhado da versão "sanitizada" do Japão apresentada pelos sentai, suburbano e limpo. "É muito raro ver uma versão do Japão mais suja", acrescenta.

Publicado também nos Estados Unidos no fim da década de 1980, o mangá provocou influências inclusive no mercado norte-americano.

"Era um quadrinho mais adulto, um estilo que os americanos começaram a fazer mais por volta da mesma época. Mas não adulto no sentido de ter muita morte e sexo, de realmente ser x-rated para adulto. É um quadrinho que um adolescente ou um adulto podem ler. Apesar de ser futurista, é a vida real: os jovens são meio delinquentes, não tem ninguém megabonzinho, super-homem e tal, e o cara que é só malvado", analisa Cassius Medauar, gerente de conteúdo da JBC, editora que desde 2017 tem republicado os volumes de Akira no Brasil - até aqui, os três primeiros já foram colocados à venda.

"Você tem o exército, os caras delinquentes, você tem os poderes, e todo mundo está tentando viver sua vida. Os EUA, a partir daí, tentaram fazer mais histórias assim. Os comics americanos até então eram muito mocinho e bandido, uma linha certinha", completou.

Até aqui, três dos seis volumes de Akira foram republicados no Brasil desde 2017 - Emanuel Colombari/UOL - Emanuel Colombari/UOL
Até aqui, três dos seis volumes de Akira foram republicados no Brasil desde 2017
Imagem: Emanuel Colombari/UOL

Mas e a Olimpíada de 2020 na história?

Akira não é uma história olímpica, e as competições de 2020 pouco influenciam na narrativa. Na verdade, embora a coincidência impressione, o tema pode ser visto como uma escolha do autor para incluir uma grande obra que ajude na história. No caso, a construção do Estádio Olímpico é uma cortina de fumaça das autoridades nipônicas, que escondem sob o local estruturas do projeto que estuda Akira e as demais crianças com poderes.

"É um pano de fundo. Não chega a ser parte integral da história, mas simboliza coisas. Na minha leitura, eu entendo que parte da ideia do Akira - mais uma vez, tendo a ideia da reconstrução do Japão - é (mostrar) a Olimpíada como um símbolo da reconstrução. A construção do Parque Olímpico fica muito próxima de (onde ocorreu) uma explosão anos antes, causada pelo próprio Akira, que tem um paralelo pela bomba. É o símbolo de desenvolvimento, fazendo um contraste pelas pessoas esquecidas por esse desenvolvimento", avalia Leo Kitsune.

A análise é semelhante à de Cassius Medauar. "Na verdade, (a Olimpíada) é só um pano de fundo e não tem um desenvolvimento disso depois. É (importante) só em um sentido: por causa da Olimpíada, eles estão reconstruindo o Parque Olímpico exatamente onde caiu a bomba", explica. "Eles usam isso como desculpa para ninguém poder chegar naquele lugar, e embaixo é onde tem toda a coisa do exército, onde eles guardam o Akira e as outras crianças especiais. É importante porque, na verdade, é grande a cobertura do exército ali, dos esquemas que eles estão fazendo."

Estádio anime Akira 2020 - Reprodução - Reprodução
No mangá e no anime (foto), construção de estádio olímpico é parte da estratégia para que autoridades escondam atividades envolvendo crianças especiais
Imagem: Reprodução

Ainda que os Jogos Olímpicos pudessem ser substituídos por outro grande evento para o propósito da história, o evento aparece com alguns detalhes marcantes. Na animação lançada em 1988, por exemplo, é no Estádio Olímpico de Neo-Tóquio que ocorre a grande batalha entre Tetsuo (já transformado em uma criatura poderosa) e Kaneda.

A organização das competições, porém, é mostrada mais como uma demonstração de força dos agentes de segurança japoneses em meio à reconstrução do país do que como de fato um grande evento.

Estádio olímpico akira 2020 - Reprodução - Reprodução
Em animação, Estádio Olímpico de Neo-Tóquio (foto) é palco de luta entre Tetsuo e Kaneda
Imagem: Reprodução

"O governo tem comando total sobre a população. O exército tem um poder muito grande ali", conta Cassius Medauar. "Saem uns robôs que, se te encontram na rua, podem te matar. Um toque de recolher futurista. Se você linkar só com a questão da Olimpíada (como foco da narrativa), extrapola mesmo a coisa do mangá. A Olimpíada e tudo que acontece, sim, têm a ver com o que eles escondem. O comando é todo deles, as pessoas têm que viver sua vidinha".

Na vida real, a capital japonesa - escolhida em 2013 como sede olímpica de 2020 - serviu a outro propósito, também ligado a uma catástrofe local. Em junho de 2011, o presidente do Comitê Olímpico Japonês, Tsunekazu Takeda, dizia que a candidatura serviria "aos interesses nacionais" de unir a nação "como símbolo da recuperação do Grande Terremoto do Japão Oriental", em referência ao maremoto que provocou o desastre nuclear de Fukushima em março do mesmo ano.