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Opinião: ESPN perde identidade em lenta e dolorosa agonia

Chico Silva

Colaboração para o UOL, em São Paulo

16/08/2019 15h15

Por anos, a ESPN reinou quase soberana no universo dos canais esportivos da TV paga brasileira. Seu único concorrente era o Sportv, que ainda não tinha a força que tem hoje após a integração com a Globo. Com isso, a plataforma esportiva do grupo Disney nadava quase de braçada. Além de um jornalismo combativo e vigoroso, tinha os direitos da Liga dos Campeões. Hoje, por outro lado, vive clima de incerteza após anunciar a saída de dez profissionais.

O canal foi responsável direto pela popularização dos grandes clubes europeus no Brasil e criou formatos que até hoje estão no ar e acabaram copiados pela concorrência, como "Bola da Vez"," Linha de Passe" e "Resenha". Esse pacote ajudou a formar uma geração de "fãs de esporte", como ficaram conhecidos os fieis espectadores da emissora. Orgulhava-se também do forte núcleo de esportes radicais, herança direta da matriz americana, e de iniciativas com o a "Caravana do Esporte", muito mais um projeto social do que uma atração de TV.

Comandado por José Trajano, alma, cérebro e coração do canal, o time unia estrelas do quilate de Paulo Vinícius Coelho (o PVC), Helvídio Mattos, Juca Kfouri, Roberto Salim, Lúcio de Castro, Alê Oliveira e Rodrigo Rodrigues, além de revelações como Gabriela Moreira e Diego Garcia. Até o craque Tostão, mesmo não sendo do elenco fixo, era figurinha fácil nas telas da ESPN. Mesmo quem não era muito "fã" do canal reconhecia sua identidade.

Mas chegou o dia em que os executivos da emissora acharam que era hora de mudar sua "cara". Na visão deles, era preciso repaginá-lo e prepará-lo para os novos tempos do esporte na TV paga, uma era marcada pela mesa-redondatização da grade, gracinhas sem limites e uma ferrenha e cara concorrência pelos direitos dos principais eventos esportivos. Previa-se também a necessidade de enfrentar a chegada de novos players de ambientes digitais, caso da DAZN, que hoje transmite torneios como a Copa Sul-Americana e sonha com a Liga dos Campeões.

Foi justamente aí começou a derrocada que culminou, essa semana, com a saída de João Palomino, principal executivo do canal, e de nomes como João Carlos Albuquerque, o Canalha, Kfouri, Arnaldo Ribeiro, Eduardo Tironi, Cláudio Arreguy e o jovem estudioso de futebol Rafael Oliveira, entre outros.

Perda de identidade

Mudanças e transformações são processos naturais na vida de um canal de TV, desde que se saiba exatamente o que se quer e para onde se vai. E claramente a ESPN ficou perdida no meio do caminho. O jornalismo investigativo, uma das marcas da "era José Trajano", que dirigiu a emissora de 1995 a 2011, perdeu espaço durante a gestão de João Palomino. Reportagens premiadas como a do "Dossiê Vôlei", de Lúcio de Castro, que denunciava desvios de verbas e cobrança de comissões no patrocínio do Banco do Brasil na Confederação Brasileira de Vôlei, vencedora do Prêmio Embratel 2014, começaram a rarear. Órfãos de Trajano, os principais repórteres da casa, como o próprio Castro, deixaram a emissora.

Em 2015, veio o golpe mais duro. Depois de transmitir por anos a Liga dos Campeões e formar uma geração de brasileiros loucos por futebol europeu, a ESPN viu atônita o torneio de clubes mais famoso do mundo ir parar nas mãos do Esporte Interativo, canal esportivo do grupo americano Turner. Com a perda da Liga, perdeu-se junto um importante pedaço da própria identidade do canal.

Outro baque foi a saída de Alê Oliveira. O canal foi pioneiro ao introduzir na TV paga um tipo de humor que misturava stand up comedy com piada chula de "tiozão do churrasco". Com gracinhas que esbarravam perigosamente na fronteira do sexismo machista homofóbico, Alê se tornou uma das principais atrações da casa e um incômodo para a velha guarda, que perdeu poder, mas ainda tinha assento nas mesas-redondas da ESPN, casos de Juca e Trajano. Em 2017, Oliveira deixou a emissora após uma suposta acusação de racismo feita para uma maquiadora.

Além disso, a chegada da FOX em 2012, com Libertadores e o modelo das mesas-redondas sem fim, tirou não só audiência da ESPN, mas também nomes importantes de sua equipe, como PVC e Rodrigo Bueno.

De volta para o passado

Sem seus principais pilares, a ESPN passou a depender visceralmente de eventos como os playoffs da NBA e clássicos do Campeonato Inglês e do Campeonato Espanhol. Mas isso não foi suficiente para segurar o interesse do público. Sua audiência média vem despencando ano a ano. Há tempos perdeu para a FOX o segundo posto no ranking da audiência.

A fuga de assinantes da TV paga - mais de três milhões cancelaram o serviço nos últimos cinco anos - foi ainda mais sentida pela ESPN. Segundo dados da coluna de Ricardo Feltrin, a emissora perdeu cerca de um milhão de assinantes no último ano, um dado preocupante para um canal que só é oferecido nos pacotes mais caros das operadoras.

Na nota que emitiu após a dispensa de Palomino, Kfouri e companhia, o Grupo Disney informa que a "ESPN vive um processo de transformação e adaptação para atender aos fãs, acionistas e clientes de esportes em meio às constantes mudanças no consumo de conteúdo". Entre elas, estão a diminuição dos programas de debates, na média mais chatos e sisudos que os da concorrência, e foco na aquisição de direitos de grandes eventos esportivos.

O grande momento da ESPN em 2019 foi a transmissão das finais da NBA, com destaque para a narração de Rômulo Mendonça, o "Nerd Messiânico". Isso indica que o canal deve entrar com força na briga pelos direitos da próxima Liga dos Campões, torneio que por anos foi o principal ativo da casa. Como diria Cazuza em "O Tempo não Pára", será que ESPN verá o futuro repetir o passado? Talvez essa seja sua salvação.

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