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UFC Brasil 20 anos: 1ª visita do evento ao país teve cobertura "sem sangue"

Folha de S. Paulo com relato do primeiro UFC no Brasil - Reprodução/Folha de S.Paulo
Folha de S. Paulo com relato do primeiro UFC no Brasil Imagem: Reprodução/Folha de S.Paulo

Felipe Paranhos, em Salvador (BA)

Ag. Fight

16/10/2018 06h00

O anúncio de 1/4 de página em um dos maiores jornais do país dizia: "Ultimate Fighting Championship no SporTV: tem que ser muito abusado para perder este evento". E, lá embaixo, bem pequenos, os nomes de alguns atletas que fariam parte do show: Vitor Belfort, um tal "Vanderlei da Silva" e outros, como Tank Abbott, Pedro Rizzo e Frank Shamrock, todos desconhecidos de grande parte dos leitores da Folha de S. Paulo. E, se a própria emissora que exibiria o UFC 17.5 não sabia muito bem como promovê-lo, imaginem os veículos de comunicação mais tradicionais do país. A Ag. Fight viajou no tempo e foi buscar, nos acervos de algumas importantes publicações brasileiras, como foi tratada a primeira visita da organização mais famosa do então vale-tudo no mundo, exatos 20 anos atrás.

E, neste quesito, algumas ausências dizem muito: nada foi publicado sobre o evento do dia 16 de outubro de 1998 no jornal 'O Estado de S. Paulo', por exemplo. Nem no 'Jornal do Brasil' e em 'O Globo', principais jornais fluminenses. No 'Diário Popular' e na 'Folha de S. Paulo', houve, sim, cobertura. Nada, porém, que se assemelhe aos espaços dedicados pela imprensa da atualidade a qualquer dos eventos realizados pelo Ultimate.

O jornalista Eduardo Ohata foi o responsável pelas matérias publicadas pela Folha naquela semana. Mas isso só aconteceu, segundo ele mesmo relatou à Ag. Fight, depois de bastante insistência. Conforme contou à reportagem, foi "muito, muito, muito difícil" garantir uma cobertura mínima sobre o show, que foi realizado no Ginásio da Portuguesa de Desportos, em São Paulo. A má fama da modalidade então chamada de vale-tudo contribuía para a pouca disposição dos veículos de imprensa em noticiar o que acontecia no esporte, frequentemente manchado pelas brigas entre atletas de jiu-jitsu e de luta livre e pelas ocorrências policiais ligadas a praticantes destas artes marciais.

Ohata lembrou que mesmo entre os repórteres que foram ao UFC 17.5 - o número decimal era referente aos eventos que não se realizavam nos Estados Unidos - a aceitação ao vale-tudo era pequena. Ele recordou também a orientação que recebeu sobre como conduzir a matéria do evento, que teve a defesa do título de Frank Shamrock contra John Lober, a vitória de Pat Miletich sobre Mikey Burnett, os nocautes de Vitor Belfort e Pedro Rizzo ante Wanderlei Silva e Tank Abbott, entre outros combates.

"Alguns jornalistas que foram cobrir você via que o cara não curtia. Era muito pessoal. Quem acompanhava o negócio, que nem eu, que ficava vendo em fita de videocassete, estava muito empolgado. E tinha cara que tinha muito preconceito e foi cobrir só porque o chefe mandou. Para mim, teria sido maravilhoso se tivesse sido o inverso: o meu chefe tivesse me dado carta branca para ir cobrir. Eu tive que implorar para abrirem algum espaço. E o espaço que me deram na edição de domingo foi no pé da página", falou.

Reportagem assinada por Ohata destacava a preparação de Shamrock - Reprodução/Folha de S.Paulo - Reprodução/Folha de S.Paulo
Reportagem assinada por Ohata destacava a preparação de Shamrock
Imagem: Reprodução/Folha de S.Paulo
"Eu sou da época que a gente assistia em fita de videocassete que você alugava na locadora. E eu ficava insistindo muito com a chefia na época, e os caras: 'Não, não, não, não vai dar'. E eu lembro que teve uma matéria que eu emplaquei na semana, não sei se saiu na sexta ou se na edição São Paulo os caras diminuíram, mas era um perfilzinho do Tank Abbott. E aí no sábado mesmo eu fui cobrir, mas me falaram assim: 'Nem adianta querer emplacar isso aí como um evento esportivo de verdade, hein?'. Vai lá e faz um 'side', que é uma matéria diferente, não é resultado", acrescentou.

De fato, Ohata fez isso. Na reportagem intitulada 'Antes do quebra-pau, vale até best-seller', ele narrou todo o inusitado "aquecimento mental" de Shamrock para a defesa do cinturão. "Ao ser questionado sobre o que pensava da noção de que os praticantes de vale-tudo não passavam de 'um bando de burros', Shamrock sorriu e apontou para um tabuleiro de xadrez. 'Você quer me desafiar?', perguntou, explicando gosta de jogar xadrez e jogos que exigem certo raciocínio antes de lutar", diz o texto.

Aquela matéria menos sangrenta, que pôde sair na edição de sábado, chegando ao público horas após o show, era o possível a ser feito naquele momento. Afinal, diante do preconceito que havia contra a modalidade, todo conteúdo que não exaltasse o caráter sangrento do esporte era, ao mesmo tempo, uma divulgação positiva para os amantes do vale-tudo e uma forma de adaptar um tema delicado à aceitação do grande público.

Este foi, inclusive, o tom de toda a cobertura do UFC Brasil. Na quinta-feira pré-evento, a Folha havia publicado apenas uma pequena nota que informava a chegada dos atletas a São Paulo. Na sexta, dia do show, Ohata escreveu um perfil sobre Tank Abbott, que, na edição estadual da publicação, foi adaptada para um texto sobre o "exílio" do UFC nos Estados Unidos e as tentativas de proibir o esporte no Brasil. Os 14 parágrafos publicados naquela edição do jornal tinham também um viés didático, informando ao leitor um resumo do regulamento e, sobretudo, deixando claro que o evento tinha regras - embora estas estivessem longe daquelas que acabaram unificadas no MMA.

Apesar do pouco espaço dedicado ao maior evento de vale-tudo da época, as matérias sobre o UFC até conseguiram relegar a segundo plano outros esportes, como o tênis, que tinha Fernando Meligeni na final da tradicional Copa Ericsson - que acabaria vencida por ele -, o WCT de surfe, cuja etapa brasileira acontecia no Rio de Janeiro. No 'Diário Popular', o noticiário de vale-tudo deixou também em menor tamanho a cobertura da Fórmula 1, que decidia, naquela semana, o seu calendário de 1999 e definia os primeiros testes com os novos pneus Bridgestone, também para o ano seguinte.

"Diário Popular" ressaltou aparente antítese entre luta e fé - Reprodução/Diario Popular - Reprodução/Diario Popular
"Diário Popular" ressaltou aparente antítese entre luta e fé
Imagem: Reprodução/Diario Popular

Nesta publicação, o repórter Nicolau Radamés Creti - falecido em 2013 - destacou o "pacto oficioso de não agressão entre as academias de São Paulo", estabelecido a fim de não macular ainda mais a imagem do vale-tudo. O jornalista ouviu Carlson Gracie - que morreria em 2006 - e um representante do Batalhão de Choque da Polícia de São Paulo, que ressaltaram os esforços para manter a paz e não repetir o lamentável episódio ocorrido um ano antes no Pentagon Combat, realizado no Rio de Janeiro, que acabou em quebra-quebra e sequer teve resultado de sua luta principal, entre Eugênio Tadeu e Renzo Gracie.

Também em busca de adaptar a temática agressiva aos leitores da publicação popular, Nicolau pontuou a matéria do UFC Brasil com nomes conhecidos: além de comparar os lutadores da época aos principais jogadores de Palmeiras e Corinthians naquele ano, como Marcelinho Carioca, Evair ou Oséas, o jornalista entrevistou um dos poucos artistas famosos da época a exaltar a modalidade: Alexandre Frota, que apresentava um programa jovem na Rede Record.

Em um texto secundário, Nicolau falou sobre a relação entre luta e religião, até hoje muito presente dentro do octógono. Ele mencionou a fé de Ebenezer Braga, que nocauteou Jeremy Horn, e Vitor Belfort, que citou duas passagens bíblicas depois de vencer Wanderlei Silva. O 'Axe Murderer', inclusive, foi protagonista de um dos momentos impagáveis vividos por Eduardo Ohata no Ginásio da Portuguesa.

"O Wanderlei Silva estava se aquecendo no corredor, sabe? Eu estava passando para entrevistar não sei quem, e ele estava batendo na manopla. Daí você tem uma ideia de como teve coisa improvisada no evento. Eu não estou colocando culpa nos organizadores. É que a estrutura naquela época era aquela. Era o que se tinha para hoje. E já era um passo muito à frente de vários eventos que tiveram problemas. Inclusive, eventos que deram calote em todo mundo. Então, foi um megamérito do UFC ter feito esse evento em São Paulo", disse.

"Você ir embora, e você olha para o lado está o Pedro Rizzo mexendo no dente mole, arrancando o dente que tinha amolecido e reclamando. Eu consegui ir no vestiário do Tank Abbott depois da luta, e ele estava catatônico. Eu fui tentar entrevistar o cara, eu e um outro repórter, não lembro quem, e o cara só ficava parado, olhando para o nada. A gente tentando falar com ele e ele totalmente fora. Eu me arrisco a dizer que foi mais impactante do que qualquer edição que eu cobri depois. Eu cobri luta do 'Cigano' já campeão mundial, luta em que o Anderson Silva quebrou a perna, em que ele perdeu a invencibilidade, em que ele venceu o Sonnen... Mas esse primeiro foi muito impactante", comentou.

Depois daquela noite, o Ultimate só voltaria ao Brasil quase 13 anos depois, no UFC 134, estrelado pelos médios (84 kg) Anderson Silva e Yushin Okami. Desde 2011, quando o 'Spider' nocauteou o japonês, a organização já esteve no país outras 32 vezes - a última em São Paulo, com Thiago 'Marreta' e Eryk Anders em uma luta principal válida pelo peso-meio-pesado (93 kg).