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Fórmula 1

Capítulo 10: como Galvão me ajudou a preservar detalhes do corpo de Senna

Livio Oricchio

Do UOL, em São Paulo

28/04/2014 16h58

O que aconteceu depois das 19h05, hora em que a doutora Fiandri anunciou, oficialmente, a morte de Senna, no Hospital Maggiore de Bolonha, foi impressionante. A imprensa do mundo inteiro, instalada no hospital, precisava passar a informação para seus veículos de comunicação.

Neste capítulo, viajaremos das dificuldades de se enviar detalhes do ocorrido ao momento de espera da liberação do corpo para o Instituto Médico Legal da cidade, passando pela descrição da chocante aparência física de Senna, no centro de recuperação.

No Hospital Maggiore havia, no térreo, próximo à porta do Pronto Socorro, onde a doutora Fiandre comunicava regularmente o andamento do estado de Senna, apenas quatro telefones públicos. Eles eram disputados pelos profissionais de imprensa e até por cidadãos que estavam lá por outras razões.

Para mim, o uso do telefone naquele instante não era imprescindível. Eu poderia mais tarde conversar com o nosso chefe de reportagem e combinar as matérias que eu enviaria. Havia cinco horas de diferença a meu favor entre o horário de Bolonha e o de São Paulo. Assim, enquanto na Itália nos aproximávamos das 20 horas, na redação do jornal não era ainda 15 horas.

O que mais me incomodava àquele altura era como obter notícias do autódromo Enzo e Dino Ferrari, já que tão logo Senna se acidentou eu deixara Ímola para acompanhar a tentativa de recuperá-lo no hospital, em Bolonha. Além disso, não havia um único local onde se pudesse sentar e escrever um texto no hospital.

Eu não estava satisfeito com o que tinha para escrever. Seria tudo muito descritivo. E eu dispunha de tempo para apurar algo novo.

Cerca de uns 15 minutos depois de a doutora Fiandre anunciar a morte de Senna, eu estava próximo dos elevadores que davam acesso ao 11.° andar, onde estava seu corpo. Eu sabia, por exemplo, que o irmão do piloto, Leonardo, estava lá, junto de Galvão Bueno e Betise Assumpção, a assessora de imprensa de Senna, além de Celso Lemos, diretor da Senna Promoções.

Seria bastante importante, do ponto de vista jornalístico, ouvi-los, se possível. Eles viveram aquelas horas de angústia que antecederam a morte de um herói nacional, do seu relacionamento próximo.

Padre dá a extrema-unção

Enquanto aguardava o elevador, consciente de que me barrariam para acessar ao 11.° andar, conforme já nos haviam informado, um padre de barba longa e branca, baixinho, de idade já avançada, batina franciscana, quase uma caricatura, deixou um desses elevadores. Estava acompanhado de um senhor com idade próxima dos 50 anos. Desconfiei que eles vinham exatamente do local que eu desejava atingir, o CTI.

Padre, por favor, de onde o senhor vem?', perguntei.

“Sou o padre Amadeo Zuffa. Vim de Ímola para dar a extrema-unção a Senna. Hoje, 1º de maio, é dia de São José da Boa Morte, protetor dos moribundos, e desejava lhe oferecer a alma de Senna”, disse-me o padre.

No dia 1° de maio do ano seguinte, o mesmo padre Amadeo Zuffa rezou uma missa no local do impacto da Williams, na curva Tamburello, mas pelo lado de fora do autódromo, para lembrar a passagem do primeiro ano da morte do piloto. Eu também estava lá, em meio a uma ribanceira limitada pelo rio Santerno, junto de algumas centenas de pessoas. Mas esse é outro capítulo da história.

Conforme mencionara, o padre estava acompanhado de outra pessoa que não quis se identificar. Ele falou: “Estou aqui apenas para acompanhar o padre, que não pode dirigir e se deslocar sem alguém para assessorá-lo”. Tão logo o padre me disse o que estava fazendo no hospital, esse cidadão começou a falar sem parar.

“Senna estava sozinho, numa sala dotada de muitos aparelhos, típica desses centros de recuperação. Ficamos profundamente chocados com o que vimos”, disse. Prosseguiu: “Senna estava nu, apenas com uma toalha pequena sobre a genitália. Para se ter uma ideia do que desejo dizer, eu e o padre não o reconhecemos. Soubemos que era Senna porque um médico nos disse que aquele era o paciente que procurávamos. Seu rosto estava irreconhecível. Sua cabeça ficou do tamanho de uma bola de basquete. Enquanto o corpo não apresentava nenhuma lesão aparente e estava branco, sua cabeça tinha a cor quase negra e estava desfigurada”.

De fato, o doutor Servadei me explicara que quando o traumatismo craniano é profundo, como no caso de Senna, em geral há o rompimento das camadas nervosas, gerando o quadro descrito pelo acompanhante do padre.

Minutos de fama

Não contente em conversar comigo, o cidadão passou a contar, com entusiasmo, a outras pessoas, o que havia visto momentos antes no 11º andar. Eu o procurei e pedi para que parasse com aquele circo. Ele se sentia o centro das atenções, por ter detalhes daquilo que todos desejavam saber, ou seja, o estado em que se encontrava Senna.

Galvão Bueno e Betise Assumpção saíram do elevador nesse instante. Estávamos eu, o padre e o tal indivíduo no hall dos elevadores do hospital, no térreo. Leonardo Senna dirigiu-se a outro setor do hospital, a fim de liberar o corpo do irmão para o Instituto Médico Legal. Segundo Galvão Bueno, ele já estava um pouco recomposto do choque.

“Acabou, acabou”, disse Galvão Bueno, bastante abalado, mas sem chorar. Betise Assumpção tinha os olhos inchados. Avisei ao Galvão o que o acompanhante do padre continuava fazendo. Nos dirigimos a ele e pedimos de novo que parasse de apresentar o seu show. Cada um tem o direito de dizer o que bem entende, mas naquele caso o que o cidadão pretendia era ser notícia. Ele entendeu nossa argumentação, recolheu o padre Amadeo Zuffa e, imagino, retornaram para Ímola.

Perguntei ao Galvão Bueno quem estava na antessala do CTI. Ele me informou que a única pessoa da F1 que passou por lá foi Gerhard Berger, grande amigo de Senna. O piloto austríaco entrou e saiu por uma porta lateral do hospital, não passou pelo saguão central, e ninguém o viu.

Gerhard Berger pensou em parar

Tempos mais tarde, numa conversa com Gerhard Berger, ele me confirmou ter visto Senna no CTI e que aquilo o fez pensar se valia mesmo a pena continuar correndo.

Por mais incrível que possa parecer, ninguém da equipe Williams apareceu no hospital para acompanhar, de perto, o drama do piloto da equipe. Soube, através de Galvão Bueno, que Frank Williams havia telefonado para lá, depois da corrida terminada, para ter mais informações de seu "amigo".

Eu já tinha o que escrever. Ao menos em relação ao que se passou no hospital. Depois, pensaria no autódromo. Precisava, agora, de um local para redigir e um telefone para enviar o texto pelo modem do meu velho Toshiba 1000.

Saí do hospital e comecei a procurar um hotel nas proximidades. Eu pagaria uma diária, escreveria minha reportagem, a mandaria para a redação e, em seguida, iria para o autódromo, em Ímola, distante cerca de 50 quilômetros de Bolonha. Eu não tinha nenhuma informação da repercussão da morte de Senna no meio da F1.

Não se esqueçam, internet não existia!

Custou para eu fazer a atendente do hotel entender que precisava conectar meu computador à linha telefônica. Existia ainda naquela época um enorme receio de que os computadores conectados à linha telefônica pudessem fazer ligações sem que o hotel as controlasse. E, acredite, poucos as autorizavam.

Precisei me desdobrar para a moça da recepção do hotel desbloquear a linha telefônica do meu quarto. Ah, ia esquecendo: os cartões de crédito internacionais, ao menos para os brasileiros, era uma novidade que há pouco apenas se estabelecera no país. Pagávamos tudo com dinheiro.

Não foi difícil redigir os vários textos que enviei para a redação depois de viver momentos intensos no Hospital Maggiore. As palavras fluíam naturalmente. Liguei para São Paulo, confirmei a chegada dos textos, paguei o hotel e me dirigi para o autódromo.

Autódromo seguiu sua rotina

Cheguei lá por volta das 22h30, se bem me lembro. Era grande o número de jornalistas que ainda trabalhava, mas obviamente não havia mais ninguém das equipes ou dirigentes da F1. Os que desmontavam os motorhomes, funcionários dos times, desenvolviam suas atividades normalmente. Para alguém que chegasse de fora e não soubesse da tragédia, sequer desconfiaria que naquela pista, horas antes, a F-1 havia perdido um dos maiores pilotos que o mundo conheceu.

Vi, no fundo da sala de imprensa, uma pessoa com a cabeça apoiada na mesa de trabalho. Eu me aproximei e vi que era a jornalista alemã Karin Sturm, profundamente atingida com a perda de Senna. Conversamos, tentei ser útil, ajudá-la a se recompor. Ela me passou algumas informações de como a morte de Senna havia repercutido no autódromo. Karin era, e ainda é, amiga da família Senna.

Esse é o Capítulo 10 da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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