Estatuto do Torcedor faz dez anos sem cumprir objetivo principal
Em 15 de maio de 2003, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.671. O Estatuto do Torcedor foi comemorado por ser a primeira vez em que os legisladores se preocuparam com quem vai aos estádios no Brasil. O Governo Federal o chamou de “código de defesa do torcedor”. A alusão ao Código de Defesa do Consumidor deixava claro o objetivo principal da lei: transformar torcedor em consumidor. E conferir a quem está nas arquibancadas os mesmos direitos que, por exemplo, quem vai ao cinema ou compra uma geladeira.
Quando assinou a lei, porém, Lula foi profético: “É importante ter em conta que no Brasil há lei que pega e lei que não pega”. O Estatuto do Torcedor, pelo menos em sua função principal, não pegou.
Após dez anos, o torcedor brasileiro ainda não se comporta como consumidor quando o assunto é futebol. O UOL Esporte consultou o Procon para falar sobre as reclamações envolvendo eventos esportivos. Mas a entidade que mede a satisfação dos serviços prestados no país negou que existam problemas na área esportiva. Prova disso é que o órgão recebeu, nos últimos anos, um número insignificante de reclamações contra clubes e federações.
“O torcedor não se vê como consumidor, talvez para não prejudicar o seu clube. Ele não vê o clube como um fornecedor e ele como cliente. Ele usa o coração, não se coloca como consumidor e isso prejudica ele mesmo. Mas é difícil mudar a cabeça dele”, diz o chefe de gabinete do Procon-SP, Carlos Augusto Coscarelli. “São tão raros os casos de reclamações de torcedor no Procon que isso chama a atenção negativamente”, completa.
Em fevereiro, o Corinthians jogou no Pacaembu sem torcida, por uma punição da Conmebol. Quatro torcedores, no entanto, conseguiram entrar no jogo, graças a uma liminar. O caso é icônico quando o assunto é assunto é a efetividade do Estatuto do Torcedor: mais de 30 mil ingressos foram vendidos, mas apenas quatro pessoas foram procurar seus direitos. Leia mais sobre o caso aqui:
Lugares marcados: medida símbolo não pega
O que mais impressiona é que existem, sim, motivos para reclamação. E não são poucos. Pensando em conforto do torcedor, o Estatuto tem uma medida símbolo: os lugares nos estádios devem ser marcados, para que o torcedor veja o jogo exatamente no lugar em que comprou. Outras exigências, sem tanto apelo, falavam em sanitários com condições mínimas de uso e opções de alimentação com higiene e segurança.
“Quem vai ao estádio sabe que isso não acontece. Os lugares marcados só são respeitados em alguns raros jogos. E mesmo assim, apenas nos setores mais caros. E o sistema de venda ainda não funciona de uma maneira inteligente, mesmo existindo tecnologia para isso. Quando você vai ao cinema, escolhe exatamente onde quer sentar. Nos estádios, quase nunca é possível. Você ganha o ingresso numerado, mas só escolhe o setor. O lugar é aleatório”, analisa Felipe Ezabella, advogado especializado em direito desportivo. “E não vale nem a pena falar em banheiros ou em comida de estádio. Quem já ouviu falar em torcedor que quer chegar mais cedo para visitar o restaurante de um estádio?”
Isso não quer dizer, porém, que os clubes ignoraram completamente as regras. O Corinthians, por exemplo, usa seu programa de sócio torcedor para justificar o cumprimento de alguns itens do Estatuto. Incluindo os lugares marcados. Quem vai aos jogos do time, porém, sabe que, na grande maioria dos setores do Pacaembu, o número no ingresso é mera formalidade.
No Morumbi, do São Paulo, acontece a mesma coisa. “Ninguém reclama e ninguém utiliza os direitos que constam no estatuto. A questão dos assentos numerados é um exemplo. Todos os assentos do Morumbi são numerados, mesmo as arquibancadas. Está no ingresso, mas ninguém respeita. Nós fazemos campanhas, tem placas no estádio pedindo que se sente no lugar marcardo. Mas quando não se respeita algo simples, imagina o resto?", questiona o diretor jurídico do São Paulo, Kalil Abdalla.
Acidente marca inauguração da nova Arena do Grêmio pode ser discutido pelo Estatuto do Torcedor sob dois aspectos. O primeiro é dos lugares marcados. A área afetada é aquela usada pela torcida para a Avalanche e, a pedido dos torcedores, não tinha lugares marcados, ferindo a Lei. A segunda, abrange a responsabilidade pelo acidente, para o Grêmio. Antes do Estatuto, existia uma área cinza sobre o culpado nesse tipo de acidente
Medidas burocráticas funcionam
Se o que foi feito para dar confronto ao torcedor não pegou, medidas que pouco envolvem diretamente quem vai ver a partida funcionaram. A obrigatoriedade de divulgação das tabelas dos campeonatos 60 dias antes de seu início e prazos mínimos para mudança na data das partidas, por exemplo, são exigências da lei. O mesmo vale para a divulgação de renda e público ou das súmulas dos árbitros.
“O mais importante do Estatuto foi ter definido as responsabilidades nos eventos esportivos. Antes, ninguém respondia por nada. Eu trabalhava no policiamento e tudo sobrava para a polícia. Com o Estatuto, definiu-se o papel de cada um dos agentes envolvidos. Quem é que organiza e que providências tem de tomar, para cada um cumprir seu papel”, afirma Marcos Marinho, coronel da PM que era o responsável pelo policiamento dos estádios em dia de jogo e hoje trabalha na Federação Paulista de Futebol – além de presidente da Comissão de Arbitragem no Futebol, é diretor de Segurança e Prevenção da entidade.
Segundo Marinho, outra melhoria gerada pelo Estatuto aconteceu nos estádios. “Foi o Estatuto que forneceu os parâmetros para que os laudos em cada estádio fossem exigidos. Na segurança, principalmente, os estádios evoluíram muito nesses dez anos. É verdade que o lugar marcado ainda não funciona, mas, minimamente, os clubes foram lá e marcaram os números no concreto. É uma mudança gradual e os clubes estão se adaptando”, completa Marinho.
No mesmo cenário de medidas burocráticas, algumas chamam a atenção. Por lei, o Campeonato Brasileiro tem de ser disputado por pontos corridos. Além disso, é proibido o convite em qualquer competição esportiva. Incluindo torneios de vôlei, basquete ou futsal, por exemplo, modalidades em que nenhuma dessas regras vale.
“Inicialmente, o estatuto seria apenas do futebol, mas quando foi aprovado, incluíram no texto que era para esporte profissional. Essa inclusão deixou a situação de todos os esportes, menos o futebol, muito complicada. Campeonatos de basquete e vôlei não são por pontos corridos e, muitas vezes, não tem como fugir do sistema de convites. Sem contar as demais adequacies, como nas arenas”, reclama o advogado Ezabella.
Estatuto não consegue inibir violência
Apesar de medidas burocráticas que funcionaram, outro ponto em que o Estatuto do torcedor ainda não conseguiu melhorar a vida nos estádios envolve a violência. Em dez anos, brigas entre torcedores só aumentaram. Segundo estudo publicado pelo UOL Esporte no ano passado, 2012 foi o ano com mais mortes relacionadas ao futebol na história.
E isso acontece após as mudanças no texto da lei, que criminalizaram condutas violentas em 2010. Há dois anos, torcedor que promover tumulto e incitar a violência em estádios por meio de ações, xingamentos ou músicas estará sujeito a dois anos de prisão, mais multa. Na mesma alteração ao estatuto, aliás, manipulação de resultados e a ação de cambistas também foram criminalizadas.
A aposta para o cumprimento desses aspectos estava no monitoramento de torcedores. Inicialmente, seria feito um cadastro nacional do torcedor. O Ministério do Esporte chegou a dar início ao projeto, mas ele nunca decolou. Além disso, o monitoramento por câmeras nos estádios ainda é deficiente.
A lei exige, por exemplo, câmeras em todas as entradas do estádio, medida que funcionaria muito mais para coibir evasão de renda do que, efetivamente, evitar a violência. Além disso, apenas os maiores estádios contam com centrais de vídeo que acompanham os torcedores. E o Estatuto pedia que todos os estádios para mais de dez mil pessoa tivessem esse monitoramento.
Segundo o coronel Marinho, no estádio de São Paulo se adotam estruturas itinerantes para isso. “Os maiores estádios tem monitoramente por câmera que atende as principais necessidades. Ainda não é ideal, mas existe o monitoramento. Em alguns lugares no interior, porém, temos problema de furto de material. Então, só é feito nos jogos mais importantes”.
A esperança é que esse cenário mude com a Copa do Mundo. O país vai ganhar 12 estádios modernos e adequados às exigências da Fifa, que contemplam tudo o que é pedido no Estatuto. Mais arenas modernas também estão sendo construídas, como a já entregue Arena do Grêmio, em Porto Alegre, ou o novo estádio do Palmeiras, em São Paulo. Além disso, a esperança é criar uma cultura entre os torcedores de respeito maior aos seus direitos. A conferir.
Associação lança cartilha para explicar Estatuto do Torcedor
A associação de consumidores Proteste lançou uma cartilha para orientar os torcedores sobre seus direitos. A cartilha está disponível para consulta pela internet.
Qualidade nas instalações de estádios e ginásios, segurança e higiene, acessibilidade, transporte organizado, ingressos numerados, venda antecipada dos bilhetes, meia-entrada e acesso facilitado à ouvidoria e à Justiça são alguns dos direitos assegurados pelo Estatuto.
A cartilha mostra que os banheiros dos estádios, por exemplo, têm de ser fiscalizadas pelos órgãos públicos de vigilância sanitária e obedecer a normas de higiene e qualidade.
Ainda segundo o Estatuto, os ingressos para as partidas de competições profissionais devem ser colocados à venda com, no mínimo, 72 horas de antecedência. Em casos nos quais as equipes sejam definidas por jogos eliminatórios ou em que não se possa prever a realização da partida com essa antecedência, o prazo pode cair para 48 horas.
A cartilha mostra, ainda, que o torcedor também pode lançar mão do Código de Defesa do Consumidor para fazer valer seus direitos. Isso porque todos os envolvidos em competições esportivas, do responsável pela organização ao clube mandante do jogo, são considerados fornecedores.
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