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O que muda no surfe brasileiro após o título mundial de Medina?

Rafael Reis

Do UOL, no Havaí (EUA)

20/12/2014 11h19

O surfe nunca teve tanta atenção no Brasil. Graças ao título mundial de Gabriel Medina, o esporte passa por um incrível processo de popularização, comparável ao que aconteceu com a Fórmula 1 depois das conquistas de Senna e com o tênis durante a era Guga. Mas enquanto o país vive esse frenesi de água salgada, já é possível questionar quais serão os reais impactos desta fase na estrutura do surfe nacional. E, para isso, é preciso refletir sobre o presente e o passado.

Para começar, faz-se necessário lembrar que não é de hoje que o surfe brasileiro é representado no WCT. Desde Fabio Gouveia e Teco Padaratz, em 1992, até Medina, Pupo e Toledo, em 2014, passando por Peterson Rosa, Victor Ribas, Guilherme Herdy, Renan Rocha, Jojó de Olivença, Adriano de Souza e companhia, sempre tivemos bons atletas na elite mundial.

Mas nos últimos anos, ocorreram mudanças consideráveis que permitiram que os surfistas da nova geração brasileira deixassem de ser coadjuvantes no tour para assumirem a condição de protagonistas, um processo que começou a dar resultados em 2011, quando brasileiros venceram quatro etapas do WCT (duas de Mineiro e duas de Medina) e outras importantes etapas Prime.

Essa “invasão” brasileira foi reconhecida pelo mundo do surfe e apelidada de Brazilian Storm (tempestade brasileira). Mas como qualquer tempestade, mesmo que comece aparentemente de forma repentina, o processo de formação das nuvens leva um tempo e tem suas causas, mais ou menos óbvias.

O investimento das grandes marcas aumentou, tornando possível para os atletas viverem do surfe e ainda pagarem as contas no fim do mês, algo complicado no passado. Aliás, hoje sobra o suficiente para viver em situação bastante confortável e ainda ajudar a família.

Além disso, muitos atletas têm especialistas cuidando de suas carreiras desde cedo, pessoas que divulgam seus nomes e o transformam em marcas, profissionais responsáveis pela preparação física e psicológica.

Até coisas aparentemente bobas como ter aulas de inglês, fazem uma grande diferença. Os brasucas da atualidade conquistaram uma aceitação antes inexistente com os estrangeiros, algo que só a capacidade de se expressar e ser entendido permite. Hoje, com muito mais investimento, os destaques da nova geração brasileira são bancados para viajarem e surfarem nas melhores ondas do planeta, sendo que, no passado, nem as condições para viajar confortavelmente para a disputa das etapas do WCT eram garantidas.

“Na minha época a gente foi dando a cara e quebrando a cara. Em vários lugares a gente não sabia nem onde ficar e arrumava na hora. E hoje o pessoal tem esse incentivo do patrocinador e de saber o caminho certo a traçar”, diz Piu Pereira, um dos brasileiros pioneiros no WCT.

“Hoje eu vejo a molecada viajando com pai, mãe. Com cartão de crédito e todas essas facilidades. Quando eu entrei, não. Era dinheiro no bolso e valeu! Boa sorte”, revelou Raoni Monteiro em 2012, quando a nova geração brasileira começava a fazer barulho no cenário do surfe mundial.

Além de toda essa mudança prática, no caso do surfe brasileiro podemos citar um fator cultural divisor de águas: ser surfista passou a ser aceitável, e tivemos a primeira grande geração de pais surfistas profissionais e/ou admiradores do esporte. A mudança na percepção do surfe como modalidade esportiva legítima e como opção de carreira fica evidente nas palavras de um dos grandes nomes surfe nacional, o catarinense Teco Padaratz:

"A melhor forma de descrever a diferença entre o cenário do surfe na minha época e o cenário do surfe nessa época aqui e agora está escrito na minha camiseta aqui, que o meu amigo Royce Grace me deu: eu fazia isso antes de isso ser legal. Essa é a grande diferença. Na minha época a gente tinha que provar que o surfe era legal para as pessoas gostarem da gente (risos). Hoje eles não precisam provar nada, eles só têm que surfar e todo mundo já acompanha. O surfe já é algo que os pais botaram desde criança: “olha, vai surfar, vai surfar, porque surfar é bom”. Na minha época, eu demorei uns dois anos pra pedir pro meu pai uma prancha de natal. Ele olhou, falou assim, prancha? Que que tu queres com isso? Surfe leva alguma coisa a alguém? Alguém já ganhou alguma coisa com isso? Eu falei: não, mas tá todo mundo dizendo que eu posso ser o primeiro (risos). Foi uma guerra”.

O primeiro demorou a aparecer, mas essa guerra já começa a ser vencida. O próprio Teco, hoje empresário no mercado do surfe, exemplifica:

"A primeira análise que faço é dentro do meu campo de trabalho. Hoje organizo o evento do WCT no Brasil, que acontece no Rio de Janeiro, e a gente já percebe isso. Porque são os patrocinadores que batem na nossa porta agora. A outra diferença que a gente percebe é na audiência. A ASP, no último dia de competição, durante a bateria do Medina, bateu todos os recordes de audiência da história. Na bateria do Kelly fez uma grande audiência, mas não bateu. Isso aconteceu quando entrou o Medina na água. Isso mostra que no Brasil a expectativa do surfe tá muito grande. Hoje a gente já pode dizer que, depois do Neymar, o Gabriel provavelmente já seja o atleta mais bem valorizado do país. E isso é um grande marco porque ele é só a ponta da lança. Aqui atrás tem toda uma geração de surfistas que vai se beneficiar com esse glamour que ele está alcançando com esse sucesso, tanto financeiro como de imagem. O esporte ganha uma vitrine gigantesca. A gente vê todos os jornais, todas as televisões, todas as revistas cobrindo a história do garoto”.

É tanta atenção voltada para Medina que o surfista se tornou o segundo atleta brasileiro com mais patrocínios pessoais, atrás apenas de Neymar. Mas esse exemplo de sucesso ímpar, apesar de extremamente merecido, pode ajudar a camuflar a realidade da modalidade no país.

As divisões de base do surfe ainda são extremamente dependentes dos investimentos das grandes empresas especializadas, as mesmas que patrocinam os atletas e tem como objetivo lucrar com a exploração da imagem desses surfistas. Mas como a situação financeira dessas empresas não é das melhores nas últimas décadas, a seleção dos atletas que serão apoiados acaba sendo bastante restrita e não há dúvidas de que diversos talentos se dispersam pelo caminho. Ou seja, toda a melhoria que essa geração teve em relação às anteriores ainda é restrita a poucos surfistas.

Outra situação preocupante é a realidade do surfe feminino. O Brasil não teve nenhuma representante na elite em 2014. Apesar do crescente interesse das meninas pelo esporte, poucos são os incentivos para investir no surfe como carreira. E as que fazem isso, além de muitas vezes dependerem da boa aparência para pleitear patrocínios, sofrem muito com a falta deles. Um dos casos emblemáticos é o da pequena Pamella Mel, destaque das divisões de base, onde costuma competir até com meninos mais velhos. A surfista de Itanhaém, litoral sul de São Paulo, tem todo o apoio dos pais, mas eles têm que se desdobrar para sustentar a evolução da filha no surfe.

“O que a gente tem muita dificuldade é com a falta de investimento no surfe feminino. As vezes aparecem alguns apoios, mas patrocínio é muito dificil. E sem patrocinador é difícil manter uma atleta nas competições de outros estados e países. Pode reparar que em pranchas dos meninos sempre tem um patrocinador no bico da prancha. Já na das meninas a prancha é zerada, sem adesivos, ou seja, sem que alguma grande empresa acredite nelas. Nossa maior dificuldade com a Pamella é essa, queremos que ela evolua ainda mais, queremos levá-la para fora para surfar ondas boas, mas sem um patrocinador é praticamente impossível”, relata Regina Regatieri, mãe de Pamella Mel.

A busca por melhores oportunidades levou a família da surfista para a a praia de Maresias, no litoral norte de São Paulo, justamente onde Medina nasceu para o surfe. Não há como negar que Gabriel é o exemplo de sucesso do qual há tanto tempo o surfe brasileiro acusou-se carente.

“Agora tá todo mundo achando que pô, o Gabriel conseguiu, eu também consigo, eu posso surfar igual a ele, pô. Se não igual, muito parecido”, afirma Teco Padaratz esperançoso, com toda a razão.

Mas para que a inspiração vire evolução é preciso transformação. O título mundial de Gabriel Medina tem tudo para ajudar neste processo, mas, isolado, nada logrará. Se o fenômeno Medina é tão comparável aos feitos de Senna e de Guga, que a situação atual do Brasil na Fórmula 1 e no tênis sirvam de lição para o futuro do surfe.