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O artilheiro fiel

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morte súbita

Quem era o craque da várzea assassinado em ação desastrosa da PM

Adriano Wilkson e Daniel Lisboa De São Paulo
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Atacante interrompido

Uma ação desastrada da polícia matou em janeiro um homem inocente, pai de quatro filhos, artilheiro do futebol amador de Santo André (SP). Três policiais trocavam tiros com dois supostos criminosos quando Toni, pego no meio do fogo cruzado, levou duas balas no peito. O policial acusado de matá-lo está preso, aguardando julgamento.

Essa é a história de um atacante tímido que tentou carreira como profissional, desistiu depois de um encontro com Marcos, então goleiro do Palmeiras, e se reinventou abraçado a sua comunidade. Essa é também a história de uma vida interrompida, de uma família devastada, de um bairro inteiro que ainda se pergunta, indignado: "Por que ele?"

Durante um mês o UOL Esporte entrevistou mais de trinta pessoas e obteve imagens e documentos exclusivos para reconstruir a trajetória de José Erlânio Freires Alves, conhecido no mundo da bola como Toni, cuja morte trágica não deve ser esquecida.

"Seu marido é ladrão"

A outra face

Quem o viu jogar diz que nunca houve alguém tão disposto a perdoar como ele. Baixinho, franzino, veloz, era perseguido pelos zagueiros e apanhava muito, mas nunca revidava.

Um dia uma cotovelada lhe quebrou dois dentes. Seus colegas o incentivaram a se vingar porque é isso que os jogadores fazem. Toni acreditou que a cotovelada tinha sido um lance de jogo e desculpou o agressor. Se Toni estivesse vivo, talvez tivesse perdoado o homem que o matou.

Vinicius Andrade/UOL

A mãe e o boné

Neli vasculha a memória e se encontra uns vinte anos atrás, saindo de casa e vendo o que nenhuma mãe quer ver: seus dois filhos com as mãos ao alto sendo revistados agressivamente pela polícia.

Toni e Cícero não estão sozinhos. Ao seu lado dois vizinhos argumentam com os soldados. A suspeita era a de que os garotos fossem ladrões de carros porque eles conversavam ao lado de um carro.

Mas de ladrões eles não tinham nada.

Exceto talvez o fato de que todos usavam bonés, e os bonés lhes cobriam parcialmente o rosto. Usar boné era moda na época e a garotada adorava sair de casa com eles, conforme um dos vizinhos lembraria depois. Mas a polícia não gostava disso.

Os garotos receberam a dura com resiliência. A mãe de Toni e Cícero correu dando explicações. Os filhos dela, dizia suplicante, não estavam fazendo nada de mais. O policial se convenceu, mas lhe deu um conselho: que ela não os deixasse sair de casa de boné, porque moleque de boné pode ser qualquer um, a gente nunca sabe...

A mãe sabia. E foi além. Recolheu todos os bonés da casa, agarrou uma faca, os transformou em farrapos. E deu uma ordem que os meninos nunca mais esqueceriam: dali em diante, ninguém daquela casa cobriria a cabeça. Que Deus a livrasse de ter seus filhos confundidos com marginais.

O tempo passou, mas algumas lições são pra sempre.

Uma década depois Cícero morreu em um acidente de carro em uma estrada no Nordeste.

Dez anos depois disso, Toni caminhava ao trabalho quando recebeu dois tiros no peito durante uma operação da Polícia Militar de São Paulo. Supostamente, foi confundido com um bandido. 

Ele não usava boné.

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O sonho

Toni não tinha físico excepcional (media 1,68m e sempre foi franzino), inteligência acima da média ou o dom da oratória. Mas se havia uma coisa que ele sabia fazer, essa coisa era jogar bola. Seus colegas da época lembram até hoje.

Num campeonato intercolegial de futsal, entrou no segundo tempo, marcou quatro gols e deu a vitória de virada pra sua turma. Virou uma lenda na escola.

A essa altura, já trocava os cadernos pela bola, já fugia da igreja pela bola, jogava bola até dentro de casa e começou a levar a sério aquela paixonite pela bola. Até que um dia anunciou à mãe: queria ser jogador de futebol.

O pai foi contra, queria que os filhos tivessem profissões comuns, seguras, porque o futebol não era fácil, a vida não era fácil, e a família inteira tentou fazer o garoto mudar de ideia, mas Toni, convencido de seu talento, bateu o pé.

Se havia essa coisa de destino, o seu já estava traçado.

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O amor

Então ela surgiu – elas sempre surgem. Toni já era jogador, já tinha saído de casa atrás de seu sonho, mas estava de volta a Santo André para se recuperar de um pé quebrado.

Ele tinha 18 anos quando conheceu Vanessa, a filha da empregada de sua mãe. Tímido demais para tentar uma abordagem ousada, recorreu à ajuda do irmão mais velho para conquistá-la.

Demorou um mês para juntar coragem e pedi-la em namoro. Demorou alguns segundos para ela dizer sim. Casaram-se em pouco tempo, ele com 21, ela com 19.

Vieram as viagens de um jogador errante. Toni foi ao Paraná, ao Mato Grosso e a Israel atrás da bola. Vanessa ficou em casa. Vieram os filhos, Matheus, Diogo, Juliano e Bianca.

Vieram as brigas.  Vanessa se irritava quando Toni era enganado por empresários e cartolas do futebol. Toni preferia não discutir. Saía ao quintal, ia jogar bola porque parece que só a bola o entendia completamente. Isso irritava ainda mais Vanessa.

Logo, entretanto, vinha a paz. 

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O jogo da vida

Toni passou por Matsubara (PR), Operário (MT) e times de Israel cujo nome ninguém lembra, mas se havia alguma chance de ser contratado por um clube grande, essa chance estava ali na sua frente, no gramado do Estádio Palestra Itália.

O Operário, por um golpe do destino, tinha sido sorteado para enfrentar o Palmeiras na Copa do Brasil de 2003. O jogo de volta, em São Paulo, seria transmitido pela TV.

O atacante habilidoso vestiu a camisa 8 e preparou-se para o jogo de sua vida. No gramado foi entrevistado por um repórter e disse que seu time não podia fazer “nenhuma loucura” ou tomaria uma goleada do Palmeiras.

Toni correu, driblou, fez pingar chuveirinhos na área, chutou a gol, mas ao cabo de quase 80 minutos de futebol, fracassou. Os lances da partida não mostram o Operário fazendo nenhuma loucura. Mesmo assim, o Palmeiras goleou, 5 a 1.

Toni, que sonhava com um contrato, recebeu apenas silêncio. Desiludido, começaria a alimentar o desejo de voltar pra casa e desistir de vez do futebol.

Tudo poderia ser diferente não fosse a destreza do goleiro Marcos, considerado santo pelos palmeirenses. Naquela noite no Palestra, Toni correu em direção à grande área e chutou uma bola cruzada. Ela desviou na zaga e descreveu uma parábola no ar. Quase encobriu Marcos, que se contorceu todo para desviá-la por cima do gol com a ponta dos dedos.

Seria o gol da vida de Toni, seria o gol que lhe faria conhecido no mundo da bola, seria o gol que lhe renderia um bom contrato. Exceto que não foi.

Meses depois, ele faria as malas e estaria aposentado, de volta a Santo André. Tinha menos de 30 anos.   

Na ponta dos dedos

Portal da várzea

O artilheiro fiel

Toni está no vestiário de um modesto estádio de Santo André preparando-se para o jogo mais importante do ano. Juninho, o técnico, está abraçando cada um de seus jogadores. Ele se aproxima do melhor do time, beija sua testa e diz: “Hoje é seu dia.” Toni, conforme o técnico lembraria anos depois, responde: "Pode deixar que um eu faço."

Ele já está há dois anos vestindo a 11 do Vila Sá, time amador comandado por amigos do bairro. Quando voltou a morar na cidade depois de desistir da carreira profissional, foram esses amigos que o contrataram por R$ 50 por jogo e, eventualmente, por uma cesta básica.

Toni se destacou tanto que, temendo perdê-lo para outro clube, o treinador lhe arranjou um emprego de auxiliar de almoxarifado em uma multinacional de Diadema. Agora Toni ganhava um salário razoável, vale-alimentação e convênio médico para a família.

Começava aí uma relação de gratidão e fidelidade e, por causa dela, Toni nunca pensou em deixar de vestir a camisa rubro-negra da equipe, que defenderia por nove anos ininterruptos.

 

Reprodução

Ele chegou àquele jogo com a sensação de que poderia se tornar o herói do dia. Mas em campo as coisas não estavam indo bem.

Quando o empate parecia prevalecer, a mágica aconteceu, a uns cinco minutos do apito final. Um chute forte, no centro do gol, sem defesa, seguido de gritos descontrolados na arquibancada que significavam uma coisa só: glória.

Anos depois todos lembrariam aquele gol como o feito mais incrível de Toni. Não pelo gol em si, mas pelo que veio depois.

Envergonhado, tímido, um sujeito incapaz de pisar numa formiga mesmo por acidente, o camisa 11 explodiu de excitação. Controlando-se, passou em frente à torcida adversária com o indicador sobre os lábios, pedindo para ela se calar.

Depois dirigiu-se aos próprios torcedores, bateu sobre as veias nos braços indicando que sempre daria o sangue por eles e pulou no alambrado para abraçá-los. “Foi a primeira vez que eu vi gente chorando em um jogo do Vila Sá”, lembra Everton Felipe, o Mico, hoje presidente do clube.

O Vila Sá avançaria no campeonato. Toni finalmente realizava seu sonho de criança. Não do jeito que ele imaginou, mas do jeito que foi possível. Agora ele era um jogador querido, com uma torcida que o amava e que estaria sempre ao lado dele.

"Herói da comunidade"

Adriano Wilkson/UOL

Os tiros

Talvez fosse só um pesadelo. Deitada em sua cama por volta das 5h30 da manhã, Vanessa escuta tiros e acorda sobressaltada com uma sensação ruim. Ela busca o celular. Está sem bateria. Pula da cama, encontra o carregador, procura na tela do aparelho a palavra "Amor" e liga para o marido.

Só chama.

Depois de muito tempo alguém finalmente atende. Não era Toni.

Vanessa quer saber sobre o marido.

Silêncio.

A chamada é cortada.

Desesperada, Vanessa acorda Matheus e diz que algo aconteceu com o pai dele. O garoto, 14 anos, sai de casa e passa pela rua por onde o pai caminha todas as manhãs em direção ao trabalho.

Vanessa liga para a mãe de Toni em busca de informação. Ela saiu para trabalhar, responde Manoel, o marido dela. Alguém chama Vanessa no portão e pergunta por Toni. Nervosa, ela grita que ele já saiu.

A mulher não tem coragem de seguir ao encontro dos sons que a acordaram e seguir os passos de Toni avenida acima. Um mau pressentimento a impede. Ela liga para o trabalho do marido, mas ninguém sabe sobre ele. Matheus volta para casa e diz que a mãe precisa ser forte porque o pai estava machucado.

Foi o marido da mãe de Toni quem lhe contou a verdade.

“Minha filha”, disse Manoel, “me desculpe, mas mataram seu marido.”  

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Policias militares vigiam o corpo de Toni

O fim

As duas balas entraram no peito de Toni, perfuraram seu coração e pulmões e pararam apenas na musculatura das costas. Ele caiu encostado a uma parede e começou a sangrar.

Sem saber, tinha caminhado calmamente na direção de três policiais que, de acordo com o que disseram depois, dobravam a esquina trocando tiros com dois criminosos.

Um deles, o sargento Eduardo Pontes, depois de descarregar sua arma na rua estreita, avistou Toni caído e pensou se tratar de um dos assaltantes que ele perseguia. Deixou-o agonizando e saiu no encalço do outro.

Mais à frente, o sargento Pontes atirou e matou um homem de 22 anos, um dos suspeitos. Ao voltar ao local onde Toni estava, encontrou uma arma a cerca de oito metros de seu corpo, o que, de acordo com o depoimento do PM, reforçou a sensação de que Toni era o outro assaltante.

Quando as pessoas começaram a se reunir em volta do corpo do jogador, os policiais afirmavam que ele era um marginal, o que revoltou aqueles que o conheciam. Um morador da rua diz que ouviu de um dos policiais: “Não se preocupe que esse é um a menos para nos dar trabalho.”

Matheus, filho de Toni, ao chegar à cena do crime também ouviu que o pai era bandido. Um homem que conhecia Toni gritou indignado para os policiais que guardavam seu corpo: “Vocês mataram um trabalhador, só isso. Isso é vergonhoso!”

Com o tempo, os policiais foram percebendo o que tinham feito.

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Débora chora a morte do irmão

O sargento Eduardo Pontes foi à delegacia. Disse que não viu Toni caminhando na rua e só percebeu que havia alguém ali quando o jogador já estava caído. Baseado no depoimento dos outros policiais e em imagens de câmeras de segurança, o delegado André Luis dos Santos concluiu que ele mentiu e que era impossível não ter visto Toni antes de atirar.

O sargento foi acusado de homicídio doloso porque ele teria assumido o risco de matar e está preso no presídio Romão Gomes, exclusivo para militares. Parentes e amigos de Toni dizem ter visto o sargento chorar na delegacia. Seu advogado afirma que ele tem mulher e filhos e está sofrendo muito pela morte de um inocente.

O sargento diz não saber se as balas que mataram Toni saíram de sua arma ou daquela do homem que ele perseguia.

“Ele não é nenhum sanguinário”, disse o advogado Celso Vendramini. “Foi um entrevero entre polícia e meliantes que acabou vitimizando um homem trabalhador. São ossos do ofício.”

Vendramini, na profissão há 26 anos, se especializou em defender policiais acusados de crimes.

Ele diz se sentir confiante na absolvição de seu cliente.

Vidas depois da morte

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