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Fórmula 1

Capítulo 4: Williams machucava as mãos de Senna (e reparo foi fatal)

Livio Oricchio

Do UOL, em São Paulo

28/04/2014 16h52

Na quinta-feira anterior ao GP de San Marino, terceira etapa do Mundial de 1994, vários jornalistas aguardavam a chegada de Senna ao autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola. Dentre eles, eu. Já passava das 15 horas e nada de ele aparecer na pista. 

Estava numa cidade próxima, não me recordo o nome, talvez Ferrara, para o lançamento de uma bicicleta com a marca Senna. Ela reunia, claro, o que de mais avançado existia em termos de tecnologia. Senna procurava associar seu nome apenas a produtos de excelência.
 
De repente, uma pequena multidão começou a se deslocar dentro do paddock, sinal característico da aproximação de Senna. Com Senna era sempre assim. Onde estivesse, no mundo todo, seu carisma, sua forma de instalar-se no coração das pessoas o tornavam íntimo de brasileiros, japoneses, malaios, hondurenhos e australianos. Sua figura tinha a extraordinária capacidade de as pessoas não se lembrarem da sua origem, cor ou religião. 
 
Quem o via, manifestava a sensação de ser íntimo dele, ainda que o visse apenas na TV ou nas fotos. A forma carinhosa, fraterna como o abordavam denunciava essa relação muitas vezes mística entre a torcida e o piloto. Senna morava dentro de cada um. Milhões o transportavam consigo onde estivessem. Na maioria das vezes Senna convivia bem com isso e certamente apreciava. Em outras, evitava o público e isso levou alguns torcedores se decepcionarem.
 
Nem sempre compreensivo com a torcida
 
Presenciei cenas das duas naturezas. Uma ficou marcada. No GP da França de 1992, Michael Schumacher forçou a ultrapassagem em Senna, no fim da grande reta de Magny-Cours, depois da largada, colidindo na McLaren-Honda. Senna teve de abandonar. O alemão prosseguiu na corrida. 
 
Mas na 18.ª volta, de um total de 72 previstas, começou a chover forte e Roland Bruynseraede interrompeu a corrida. Senna foi então tirar satisfações com Michael Schumacher. Saí da cabine da Joven Pan ao ver Senna indo na sua direção e assisti ao espetáculo de perto. Ameaçou o alemão: “Vim aqui porque te respeito. Mas saiba que da próxima vez antes de você me acertar de novo serei eu a te acertar”. E saiu. Michael Schumacher permaneceu olhando para baixo, com cara de raiva. Mas não disse nada.
 
Em seguida Senna foi para o paddock. Nesse instante um grupo de jovens se aproximou, andou ao seu lado e quando Senna parou eles pediram um autógrafo. Senna estava fora de si. Falou quase gritando: “Não, agora não, não vou dar autógrafo. Me deixem em paz”. 
 
Nem todos, obviamente, compreenderam que seu estado emocional não era o ideal para uma aproximação daquelas. Mas talvez fosse sua única chance ao lado do ídolo. Da mesma forma, aquela reação foi desmedidamente agressiva com quem não tinha responsabilidade no ocorrido. Com certeza aqueles moços e moças se decepcionaram.
 
Senna passa por fotógrafos - AFP PHOTO/JEROME DELAY - AFP PHOTO/JEROME DELAY
Senna passa por fotógrafos
Imagem: AFP PHOTO/JEROME DELAY
 
Um ser imortal
 
Mas voltando ao Senna mais conhecido. Sua determinação, competência e fé, esta nunca escondida, o transformaram num semideus, um ser imortal. A comoção que se seguiu a sua morte decorre muito dessa conotação de imortalidade que lhe atribuíam.
 
Entre atender os jornalistas de língua inglesa e italiana, quinta-feira à tarde, no autódromo de Ímola, Senna comunicou a nós brasileiros que em seguida falaria conosco. Esperamos alguns minutos e ele entrou no motorhome da Williams. Conversou rapidamente com Frank Williams e sentou-se para comer. 
 
Estava numa das mesas da área coberta, ao lado do ônibus da equipe. Os milionários motorhomes de hoje não existiam. As equipes se limitavam a seus ônibus e lonas estendidas, onde sob ela tudo acontecia. 
 
Senna nos convidou para sentar também e, enquanto saboreava um prato de macarrão, com molho branco, conversou conosco. Não havia mais de quatro ou cinco jornalistas com ele. Tinha os cabelos longos, uma camisa xadrez. Brincamos, entre nós jornalista, que aquela camisa se assemelhava às das duplas sertanejas. As autênticas. Senna sempre foi muito discreto com suas roupas. Naquele dia fugira ao seu padrão.
 
Sempre com o olhar distante, como se algo o incomodasse profundamente, respondia às questões visivelmente com a cabeça em outro lugar. "O carro deve melhorar aqui, nós o estamos entendo melhor, a pista não é das mais onduladas e terei um pouco mais de conforto agora." 
 
A seu pedido, Adrian Newey e Patrick Head promoveram no pouco espaço de tempo entre a prova anterior do campeonato, no Japão, e aquela, apenas 15 dias mais tarde, alterações no cockpit do modelo FW16. Senna batia com as mãos nas paredes internas do cockpit quando pilotava. Mais para a frente veremos que esse fato acabou por ser determinante para o acidente que o matou apenas três dias depois. Segundo a perícia técnica.
 
A porção dianteira do cockpit era impensavelmente estreita. O regulamento da F1 na época não impunha as mesmas dimensões mínimas de hoje, mais humanas. E Adrian Newey foi, como sempre, no limite. Ao virar o volante, Senna esbarrava com a parte superior da mão nas laterais internas do cockpit. Ao longo de quase duas horas de corrida aquilo era um problema. Sua mão acabava ferida.
 
 
Piloto contorcionista
 
De novo conversei com Ivan Capelli, piloto do Leyton House de 1990, também projetado por Adrian Newey. "Para entrar no carro eu tinha de apoiar o pé esquerdo sobre o direito e somente depois de sentar deslocar o pé esquerdo para a sua posição normal. Não havia espaço para entrar com as pernas lado a lado." 
 
Os mesmos princípios de reduzir ao máximo a área frontal do carro, a fim de diminuir o arrasto aerodinâmico, ou resistência ao ar, Adrian Newey aplicava também no FW16 da Williams. Todos os projetistas fazem isso, verdade, mas sem levar a coisa ao limite do insuportável para o piloto, como Adrian Newey sempre optara.
 
Senna estava visivelmente perturbado. Primeiro havia a questão do duplo abandono nas duas primeiras etapas do Mundial, no Brasil e no Japão. Contra todas as previsões. A constatação de que Michael Schumacher e a Benetton eram adversários muito fortes e sua Williams, FW16, "um desastre". 
 
Não é tudo. Fora das pistas as coisas exigiam também de Senna muita dedicação, ajudando a compor o quadro de extrema apreensão que vivia. Ele estava investindo pesado em alguns negócios e, naturalmente, isso o preocupava.
 
Investimentos grandes em várias áreas
 
Acabara de assinar um grande contrato com o fabricante alemão de automóveis Audi para representar a marca no mercado brasileiro. Era coisa de milhões e milhões de dólares e muita responsabilidade. Ao mesmo tempo adquirira a concessionária Ford Frei Caneca em São Paulo. Seu sócio, o Bira, estava em Ímola. Havia ainda muito o que acertar sobre essas transações.
 
Durante o almoço de Senna no motorhome da Williams, já próximo das quatro horas da tarde, chegou Ricardo Patrese, que abandonara as pistas no fim da temporada anterior. A forma alegre, expansiva com que o italiano falava com Senna, ali no nosso lado, contrastava com a postura fria, distante do brasileiro, apesar do seu esforço em desejar expor a Patrese seu contentamento em vê-lo.
 
Veremos mais à frente que o clima de tensão para Senna cresceu tanto depois do grave acidente de Rubens Barrichello, da Jordan, no dia seguinte, sexta-feira, e da morte de Roland Ratzenberger, da Simtek, no sábado, que o médico da Fórmula 1, doutor Sid Watkins, chegou a conversar com o piloto, sábado à noite, orientando-o a não disputar o GP de San Marino, o que o matou.
 
"Ele me disse, o que é que eu vou alegar para a equipe, nessa situação em que estamos, 20 pontos atrás de Schumacher na classificação? Apenas que não estou bem?" Sid Watkins nos contou, anos depois, o que Senna lhe disse naquele dia.
 
O doutor Sid Watkins era um homem notável. Neurocirurgião, criou depois da morte de Senna o FIA Institute para cuidar da segurança da F1, dentre outros interesses. E realizou uma obra gigantesca. Farei um texto sobre o tema, antes ainda de 1.º de maio. O doutor Sid Watkins morreu em 2012, aos 84 anos.
 
No próximo capítulo vou descrever a apreensão de Sid Watkins com relação à participação de Senna na prova. A reação do piloto ao visitar Rubinho no Hospital Maggiore de Bolonha, sexta-feira à noite. Mais: o choro de Senna ao saber da morte de Ratzenberger, depois do impacto do carro da Simtek no muro da curva Villeneuve, e a incrível punição da FIA por ele ter ido até o local do acidente.
 
Esse é o Capítulo 4 da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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