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Como é a relação de torcedores do River Plate que vivem perto da Bombonera?

Cristopher Armoa, o Titilo: mora ao lado do Boca Juniors, mas torce pelo River Plate - Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL
Cristopher Armoa, o Titilo: mora ao lado do Boca Juniors, mas torce pelo River Plate Imagem: Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL

Gustavo Mehl Figueiredo

Colaboração para o UOL, em Buenos Aires

09/11/2018 19h01

As ruas do bairro de La Boca são normalmente inteiras pintadas de “azul e ouro”, como são chamadas as cores do Boca Juniors pelos seus torcedores. Os muros, as casas, os postes, as calçadas. Nos arredores de La Bombonera – palco do primeiro jogo da final da Libertadores entre Boca e River, neste sábado, às 18h (de Brasília) –, centenas de turistas uniformizados vêm de toda parte da Argentina para garantir uma foto em frente ao tradicional estádio.

No meio desse quadro bicolor, o jovem Titilo caminha tranquilamente com seu boné e seu casaco cor vermelho carmim. O garoto de 20 anos, de olhar doce e cara de adolescente, cuida dos carros que estacionam à noite na rua Brandsen, entre as esquinas com Iberlucea e Palos. Às suas costas, o estádio Alberto J. Armando se impõe em três anéis verticais, um enorme bloco de cimento pintado que lhe serve de cenário.

“Sou River Plate com todo o meu coração”, declara-se, taxativo, sem qualquer espaço para negociação nem sinais de que seja falseada a sua convicção. E antes que o repórter peça, se adianta em contar sua história.

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Titilo nasceu de nome Cristopher Armoa ali mesmo, no hospital do bairro. Teve uma vida difícil, cresceu com a mãe e quatro de seus sete irmãos em um cortiço de chapa de metal, a uma quadra da Bombonera. Há cerca de um ano, a família foi despejada e se mudou para outro cortiço que fica depois da avenida Almirante Brown.

Titilo nunca conheceu seu pai biológico, mas foi adotado pelo ex-marido de sua mãe, Monica Lila, um uruguaio chamado Miguel Ángel que trabalhava nas indústrias do outro lado do rio Riachuelo. Seu novo pai - adivinhe? - era torcedor do Club Atlético River Plate. Foi dele que herdou o vermelho e branco.

Mas não foi uma decisão qualquer. A partir de seus três anos, o menino cruzava a ponte para ficar com o pai, que se manteve presente mesmo depois de separado da mãe. “Eu sempre quis ser como meu pai. Cresci com ele me contando histórias de jogos no Monumental, falando sobre jogadores e comemorando vitórias do River”, lembra. “Eu já sabia que não era comum ser River e morar na Boca. Mas me lembro muito bem de uma noite, quando eu tinha uns dez anos. Minha mãe passava o pente fino na minha cabeça para tirar piolhos e eu ficava pensando nisso tudo de ser Boca, ser River.”

O rosto do menino se ilumina ao contar. “Tomei coragem e falei para ela: ‘Mãe, quero ser River’”. A mãe, que sempre foi Boca, respondeu na hora que tudo bem, que ele podia ser o que eu quisesse, desde que estivesse feliz – e o moleque conta isso com um sorriso.

Mas Titilo não é um millonario (torcedor do River) comum. Desses que, se passar por aquela quadra, atravessa a rua para não encarar a Bombonera de frente. Pelo contrário: conhece o clube de dentro.

Crescendo com o rival

Aos sete anos, sua mãe queria que Titilo praticasse esportes e lhe inscreveu pra lutar caratê. Onde? No Club Atlético Boca Juniors, é claro. Chegou a viajar para Bariloche para lutar em uma competição representando o “azul e ouro”.

Na mesma época, aproximou-se da programação do Departamento Cultural do Boca, que organiza atividades gratuitas para os moradores humildes da região. Jogou futebol, handebol, basquete e outros esportes, teve aulas de pintura, de grafite, de xadrez. Como enxadrista chegou a ganhar a medalha de prata defendendo o clube de seu bairro nos Jogos Evita, competição estudantil com alunos de toda a Argentina. Literalmente cresceu dentro das dependências do CABJ.

Foi até funcionário: trabalhou como monitor da colônia de férias do clube para crianças da vizinhança. Até hoje, é lá no Boca que ele joga bola com os amigos. Ou melhor: com os que sobraram.

“Vários dos meus amigos de infância estão presos ou se perderam na relação com as drogas”, conta. “A vida aqui na Boca é bem dura, muitas pessoas te provocam para que você seja má pessoa. Eu acho que minha mãe sempre teve medo que eu fosse por esse caminho, por isso me incentivava a ter a cabeça ocupada.”

Caso curioso: Titilo é torcedor do River mas cresceu nas dependências do Boca - Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL - Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL
Caso curioso: Titilo é torcedor do River mas cresceu nas dependências do Boca
Imagem: Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL

Quando perguntado se sua história não diminuiu a sua paixão pelo River Plate, Titilo corta o papo e deixa claro: “Olha, eu sou River e muito River. Não perco um jogo e não tenho dúvidas. Mas todos no clube do Boca me conhecem desde pequeno. E eu conheço todos e todos os cantos do clube, cada pedaço da Bombonera eu já pisei”.

E ao Monumental, você já foi? “Sonho em ir um dia, mas infelizmente é longe e lá em casa nunca tivemos dinheiro pra ir aos jogos”, lamenta. E repete, sorrindo: “Meu pai, sim. Meu pai já foi”.

Nem sempre em harmonia

Titilo não é, evidentemente, o único torcedor do River em La Boca, nem tampouco um modelo. Na verdade, há muitos millonarios e torcedores de outros clubes no bairro, e não é incomum ver moradores passeando tranquilamente com a camisa ou o casaco de seus times em dias em que não há jogo na Bombonera. Mas, é claro, nem todos convivem tão harmoniosamente com a vizinhança do clube inimigo.

Outro torcedor do River com quem conversamos em La Boca foi Matías Beola. Ele já não mora mais por ali, mas é exemplo desses torcedores tradicionais, que têm calafrios só de pensar nas cores rivais. Durante três anos, ele foi literalmente vizinho de porta do estádio, abria a janela do seu quarto e dava de cara com as arquibancadas.

Bem-humorado, ele lembra da época. “Era engraçado, eu tinha um ritual que era acordar rogando pragas ao outro lado da rua. Literalmente, ia para a varanda e maldizia em voz alta: ‘Estádio de m...! Chiqueiro! Caindo aos pedaços!’, esse tipo de coisa”, conta, às gargalhadas. “Funcionava. Durante o tempo que morei aqui, o Boca não ganhou nada, nem cara ou coroa”, orgulha-se.

Matías, na varanda de sua antiga casa: relação não tão harmoniosa com o vizinho - Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL - Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL
Matías, na varanda de sua antiga casa: relação não tão harmoniosa com o vizinho
Imagem: Gustavo Mehl Figueiredo/Colaboração para o UOL

Matias se mudou para um bairro, digamos, mais neutro, mas seu amigo Javier Astutillo ainda mora na mesma casa. Chileno de Santiago e torcedor da Universidad de Chile, Javier vai completar dez anos em Buenos Aires.

“Morando aqui há tanto tempo, virei também torcedor do Boca. Minha relação com o time vem da minha relação com o bairro”, conta. “Acho difícil morar aqui e não se contaminar pelo clube, não criar uma estima. Tudo gira ao redor do clube. Quem não gosta dele deve sentir um gosto amargo.”

A sentença de Javier contrasta com o jeito tranquilo do garoto Titilo. Mas afinal, o que será que ele sente pelo time rival? “Tenho carinho e respeito pelo clube”, afirma. “Não tenho problema em dizer isso, cresci aí, já te contei. Mas fora das quatro linhas, apenas. No campo, sou River e não abro mão”, esclarece.

Mas você não sente raiva nem quando tem Boca x River? “Eu fico emocionado, é claro. Mas a parte que eu gosto não é tanto a da rivalidade. Eu gosto é da massividade do Superclássico, da quantidade de gente que o jogo move. Foco nas coisas bonitas”, diz o garoto.

Antes de se despedir do rapaz, ainda intrigado com aquela relação tão bem delimitada e madura, entre a herança paterna e a herança de seu bairro, o repórter arriscou a última pergunta: qual é a sua expectativa para a final, Titilo? O que você espera?

Titilo abriu um sorriso e respondeu de bate-pronto: “Quero que a gente ganhe. E que todo mundo fique tranquilo”.