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Contrato de gaveta e clube-ponte: MP investiga CBF por fraude no BID

Sede da CBF, no Rio de Janeiro. Entidade é investigada pelo MP-RJ - EFE/Agência Brasil
Sede da CBF, no Rio de Janeiro. Entidade é investigada pelo MP-RJ Imagem: EFE/Agência Brasil

Pedro Lopes

Do UOL, em São Paulo

07/07/2017 04h00

Sob segredo de Justiça, a delegacia de defraudações da Polícia Civil do Rio de Janeiro e o Ministério Público do Rio de Janeiro conduzem, há meses, uma investigação sobre denúncias de fraudes que teriam sido cometidas pela CBF em seu próprio sistema de registros de contratos e transferências, o BID. Na última quinta-feira, inclusive, novas acusações foram incluídas no processo: a entidade é acusada de omissão e até manipulação do sistema para proteger negócios do Santa Rita, administrado pela família de Gustavo Feijó, vice-presidente da Confederação, e encobrir o funcionamento da Penapolense como clube-ponte para negócios no Brasil e no exterior.

As investigações vêm da união entre denúncias em processos cíveis movidos pelo Palmácia, clube do Ceará, e pelo empresário Acionir Barreto, de Criciúma, remetidos à Polícia e ao MP e acompanhados pelos advogados Patricia Brunel e Marcelo Santiago. A entidade que comanda o futebol brasileiro nega as irregularidades, atribui as alegações à falta de conhecimento dos acusadores sobre o sistema e a legislação de registros e diz manter a confiança de que, se há alguma pendência a ser resolvida judicialmente, é entre clubes, atletas e empresários envolvidos.

Veja, abaixo, os detalhes dos dois casos que motivam a investigação:

Registro teria sido “acelerado” para proteger negócio de vice da CBF

Na Justiça do Trabalho, o atacante Bismark rescindiu, no dia 8/1/2016, seu contrato com o Palmácia, do Ceará, assinando no dia 14/1 com o Santa Rita, do Alagoas, administrado pela familia de Gustavo Feijó. O contrato foi publicado no BID da CBF no dia 18/1, mas dois dias antes, no dia 16, o clube alagoano já havia firmado contrato de empréstimo com o Najran Club, da Árabia Saudita, caracterizando, segundo os denunciantes, a primeira fraude.

A decisão que permitiu a rescisão entre Bismark e Palmácia era liminar, portanto poderia ser revertida a qualquer momento. Para o clube cearense, Santa Rita e CBF realizaram o procedimento no BID para tirar rapidamente o atleta do país caso a liminar caísse e ele tivesse de retornar ao Palmácia. Uma vez na Arábia Saudita, Bismark estaria fora do alcance de uma decisão da Justiça brasileira. 

Os fundamento das acusação de fraude são o Art. 28, § 5º da Lei Pelé, que diz que “O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício”, e o Art. 13, também § 5º  do Regulamento de Registros da CBF: “todos os atos de registro e de transferências de atletas, contratos, termos aditivos, cessões temporárias, rescisões, inscrições e reversão de atletas pelos clubes devem realizar-se somente através do Sistema de Registro da CBF para que possam produzir todos os efeitos jurídicos e desportivos”.

Em outras palavras, o Santa Rita não poderia ter assinado uma transferência de direitos de Bismark antes da publicação de seu vínculo com o atacante no BID, porque só teria tais direitos a partir dela. Isso, entretanto, teria sido permitido e registrado pela CBF. “Ou houve erro, ou houve manipulação indevida do BID. Afinal, um empréstimo nunca pode ocorrer sem que exista um vínculo formal entre o atleta cedido e o clube cedente. Nessa linha, pouco importa a data de assinatura do contrato de trabalho”, afirma Jean Eduardo Nicolau, advogado em direito esportivo ouvido pela reportagem.

A CBF se defende, e diz que, tendo acordo assinado com Bismark dia 14/1, o Santa Rita pode emprestá-lo sem qualquer problema antes da publicação no BID – ele só não poderia jogar. “Se tem um contrato hoje que está válido a partir do dia 14, mas não está registrado na CBF, o jogador já pode ser emprestado no dia 16. A transferência dos direitos que teria de ser feita depois do registro. O Santa Rita assinou o contrato com ele, ele está válido. Não está registrado, mas é válido. Se vem outro clube e quer contratar o jogador a partir do dia 16, ele não poderia assinar o contrato? Pode assinar. Não existe erro, não existe fraude. A CBF envia o certificado de transferência quando tiver registrado, mas aquilo é válido como contrato antes disso. O contrato de trabalho é válido antes de aparecer no BID. Eles inventam história, onde está escrito isso?”, rebate o diretor de registros da entidade, Reynaldo Buzzoni.

Justiça reverteu decisão e Santa Rita seria clube-ponte

Bismark cumpriu o contrato na Árabia e foi reemprestado a outro clube do país, o Al-Qadisiyah – o empréstimo termina no próximo dia 14 de julho. Em março deste ano, a liminar que o liberou do Palmácia foi revogada, decisão repetida no dia 2 de maio. A situação jurídica do atacante é precária, havendo real risco de que a Justiça Brasileira determine seu retorno ao Palmácia. A despeito disso, porém, já há acordo pela sua permanência em definitivo na Árabia.

No dia 29 de julho, o Santa Rita gerou no sistema de registros da CBF um “pré-registro” de rescisão contratual com Bismark, pré-datado para o dia 15 de julho. Isso significa que, um dia após o fim do empréstimo, o acordo entre o atacante o clube alagoano também é rescindido e ele fica livre para assinar em definitivo na Árabia. Para os representantes do Palmácia, trata-se de uma manobra do Santa Rita, com a conivência da CBF, para que a documentação de Bismark não retorne ao Brasil e não haja risco de que ele tenha de se submeter a uma decisão da Justiça do Trabalho. Isso frustraria os negócios do Santa Rita, clube da família de Gustavo Feijó, vice da entidade. A CBF nega veementemente e diz que o pré-registro da rescisão é de responsabilidade exclusiva do clube.

Bismark tem rescisão pré-registrada para o dia 15 de julho, e ficaria livre para assinar na árabia - Reprodução/UOL - Reprodução/UOL
Bismark tem rescisão pré-registrada para o dia 15 de julho, e ficaria livre para assinar na árabia
Imagem: Reprodução/UOL

“O sistema da CBF é inteiro gerado pelo clube. Qualquer clube com acesso ao sistema pode fazer contrato, gerar a rescisão de qualquer jogador. Ele já está gerando um documento dizendo que vai rescindir no dia 15. Ele pode gerar, pode até assinar com jogador hoje já. Se o jogador assinar, é problema do jogador. Ele só vai conseguir rescindir mesmo o contrato a partir do dia 15, dependendo de quando enviar essa documentação assinada para a Federação Alagoana e para a CBF. Tem denúncia disso na CPI, na Polícia, já prestamos todos os esclarecimentos. Agora está no Ministério Público, vai para lá, para cá. O Palmácia tem de cobrar o que achar de direito com o Santa Rita, a CBF não tem nada a ver”, alega Buzzoni.

A reportagem ouviu cinco advogados que trabalham em grandes clubes brasileiros e preferiram não se identificar, e todos mostraram estranheza com a ideia de um pré-registro de rescisão futura. A Lei Pelé prevê rescisão por distrato ou pelo fim do contrato, mas não tem previsão para um distrato pré-datado.

Bismark jamais atuou pelo Santa Rita, tendo sido repetidamente emprestado desde que chegou ao clube. A conduta caracteriza “transferência-ponte”, proibida pela CBF no art. 34 do Regulamento Nacional de Registros e Transferências da CBF. "Transferência definitiva seguida de transferência temporária, sem que o atleta participe de competições oficiais pelo clube intermediário”, diz uma das definições do documento para o tipo de infração. 

A CBF alega que a operação de Bismark, em janeiro de 2016, é anterior ao regulamento, de março do mesmo ano, e ainda afirma que, por se tratar de transferência para o exterior, o caso é de jurisdição da Fifa. “Quando ele fez esse processo ainda não tinha a mudança no regulamento sobre transferência-ponte. Só podemos atacar o mercado nacional. Nesse caso, transferência internacional, seria um jurisdição da Fifa, não nossa. Poderíamos no máximo alertá-los”, diz Buzzoni.

Nem sempre foi assim, no entanto. Em 2015, São Paulo, Criciúma e Monte Cristo foram investigados e multados por transferência-ponte na contratação do zagueiro Iago Maidana pelo clube paulista.

Caso Wanderson teve Penapolense como clube-ponte e foi à esfera criminal

Em junho de 2015, o empresário Acionir Barreto foi à Justiça Cível de Criciúma alegando fraudes no sistema de registros da CBF em contratos gerados por Paraná Clube e Penapolense para o jogador Wanderson Macedo. O juízo reconheceu indícios e remeteu o caso para a delegacia de defraudações do Rio de Janeiro, onde ele é investigado juntamente com o caso de Bismark.

Denuncia criminal foi encaminhada ao MP-RJ pela 1ª Vara Civel de Criciuma - Reprodução - Reprodução
Denuncia criminal foi encaminhada ao MP-RJ pela 1ª Vara Civel de Criciuma
Imagem: Reprodução

Wanderson rescindiu com o ASA-AL no dia 15 de março de 2015. Segundo os advogados denunciantes, no mesmo dia a Penapolense registrou no sistema da CBF um contrato com o jogador, com data de inicio no dia seguinte, 16 de março. Aqui haveria duas fraudes: no registro de um contrato que ainda sequer tinha, em tese, começado a valer (o caso é similar ao que ocorreu com Petros, em 2014), e o registro acontecendo em dia no qual o contrato com o ASA ainda era vigente, o que caracterizaria duplicidade.

“Se você tem um contrato gerado hoje, mas para valer a partir de 1º de agosto, o sistema vai publicar no 1º de agosto. Agora, não tem problema gerar antes. Se não como fazer um novo contrato com um jogador que está perto do fim do contrato atual? Não pode já gerar um contrato que começaria a valer a partir do dia 16 de julho?O clube já gera o contrato, para ser publicado a partir do dia 16. Isso é problema do clube, não é problema da CBF. Você pega a forma que eles colocam, que escrevem essa situação, é um assunto sobre o qual as pessoas não entendem, e dá a entender que há alguma fraude, mas não. É o funcionamento normal do sistema, só isso”, diz Buzzoni.

O negócio com a Penapolense não ocorreu e os dados não constam mais no sistema de registros. Wanderson só assinaria de fato com o clube paulista em janeiro de 2016. Dali em diante, foi emprestado ao Paysandu, ao Salgueiro-PE, ao Botafogo-PB e ao Gwang Ju, da Coréia do Sul, sem nunca ter jogado pela Penapolense – pela legislação, o caso também é passível de investigação como transferência-ponte, algo que consta da denúncia. Buzzoni afirma, entretanto, que há exceções que podem descaracterizar a presunção de irregularidades.

“A Penapolense é um clube que joga competições. Tem a questão desportiva também, tem a explicação do clube. Acontece em vários clubes de o jogador não servir para o elenco em um determinado momento, e ser emprestado, ou de surgir uma boa oportunidade de negócios. O clube precisa sobreviver também. O que não pode é você ter um clube que não joga nenhuma competição. Aí é ponte, o caso do Maidana, por exemplo. O nosso regulamento fala em presunção de ponte quando há algumas características, mas não podemos sair punindo, existem também as explicações dos clubes”, afirmou.

O inquérito policial tramita entre Policia Civil e Ministério Público, ainda está em fase de diligências e não tem prazo para ser concluído. Na Justiça do Ceará, o Palmácia cobra do Santa Rita e da CBF uma indenização de R$ 21 milhões – o caso também está em estágio inicial. O senador Romário acompanha os processos, e submeteu parte das denúncias à CPI do Futebol.