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Problemas, cultura e estrutura: o que espera por Carille no futebol saudita

Técnico deixou o Corinthians e vai para o Al-Wehda, mas brasileiros que passaram pela equipe nos últimos anos relataram problemas - Daniel Vorley/AGIF
Técnico deixou o Corinthians e vai para o Al-Wehda, mas brasileiros que passaram pela equipe nos últimos anos relataram problemas Imagem: Daniel Vorley/AGIF

Emanuel Colombari e Vanderlei Lima

Do UOL, em São Paulo

24/05/2018 04h00

Foi uma novela curta, com o capítulo final anunciado na terça-feira (22): o técnico Fábio Carille está deixando o Corinthians para assumir o Al-Wehda, atual campeão da segunda divisão da Arábia Saudita.

Em comunicado após o anúncio, Carille afirmou ter sido convencido pelo "projeto apresentado" pelo Al-Wehda. O Corinthians queria manter o treinador até a pausa do futebol brasileiro para a Copa do Mundo, em junho, mas já será comandado na quinta-feira por Osmar Loss em jogo diante do Millonarios (Colômbia) pela sexta rodada da fase de grupos da Copa Libertadores da América.

Mas afinal, o que espera por Carille no "projeto" do Al-Wehda? Para quem passou por lá nos últimos anos, o cenário no clube saudita não é dos melhores.

Problemas para receber e estrutura complicada

É o que afirma Felipe Adão. Aos 32 anos, o atacante vem de uma experiência ruim no Al-Wehda.

Em 2016, o filho de Cláudio Adão assinou contrato com a equipe. No entanto, com os salários atrasados, recorreu à Fifa para romper o compromisso assinado, que seria de quatro anos. Só conseguiu a liberação em janeiro de 2018, e voltou ao Brasil após um ano sem jogar.

"Eu costumo dizer que cada caso é um caso. Na minha situação, eles não tinham errado nada. Me pagaram as luvas, tudo certinho, fiz a pré-temporada na Europa, tudo bem. Aí, quando chegou lá, eles queriam que eu morasse de qualquer jeito em Meca (cidade do clube). Eu falei: 'Aqui não dá para viver'. É uma cultura bem diferente da nossa - a religião lá é muito forte, a mulher é tratada por eles como não fosse grande coisa", contou Felipe Adão por telefone ao UOL Esporte.

Como estava se mudando para a Arábia Saudita com a mulher, o atacante pediu para morar em um compound, uma espécie de condomínio de grandes proporções localizado fora da cidade - uma vez que Meca é uma cidade-sagrada, não-muçulmanos só podem morar fora de lá. A questão da moradia foi solucionada pelo clube, mas o atacante ex-Botafogo logo viveria outros problemas - com salários.

"Eu comecei o campeonato. Passou o primeiro mês, nada (de receber). Passaram-se o segundo, o terceiro... Minha advogada me aconselhou a mandar uma carta para o clube, dizendo que, se em uma semana eles não regularizassem, eu poderia entrar com um processo disciplinar na Fifa. Foi o que eu fiz. Aguentei até o quinto mês", disse Felipe Adão, que ainda descobriu a gravidez de sua mulher em meio ao desentendimento com o Al-Wehda.

"Enfim, entrei na Fifa e eles tiveram que pagar o contrato todo agora no mês passado (abril). Financeiramente, compensou para mim? Compensou, mas profissionalmente me deu uma quebrada. Tive que ficar praticamente um ano sem jogar futebol. Teve algumas coisas aqui no Brasil que eu não pude ir - porque quando um clube quer te contratar, ele tem que assumir o risco. Você vai jogar com um contrato provisório, e se você perder o processo lá na Fifa, que é praticamente impossível, assume o clube que te contratou. Isso me deu uma prejudicada profissionalmente", completou.

Felipe Adão no Al-Wehda - Felipe Adão/Site oficial - Felipe Adão/Site oficial
Felipe Adão assinou com o Al-Wehda em 2016, mas atraso de salários fez com que atacante tivesse que recorrer à Fifa para romper seu contrato
Imagem: Felipe Adão/Site oficial

A vida em território saudita nem sempre é fácil para brasileiros. Para Felipe Adão, não foi. O jogador passeava em Jeddah, cidade a 80 km de Meca. Mas a oferta de vida social dali nem sempre era a esperada por um jogador brasileiro.

"Para viver lá, é uma adaptação difícil. Jeddah é um lugar que tem shopping, tem até praia para estrangeiros, mas a adaptação não é fácil", disse o atacante, hoje sem clube, que alerta Carille para o cenário que será encontrado no novo clube.

"O Carille estará saindo de uma das maiores estruturas do Brasil. Quando ele for, vai se assustar um pouco. Tem um campo bom para treinar e um estádio para jogar. Na verdade, os árabes são mais enrolados que nós. Estamos acostumados com o nosso futebol, na estrutura toda, e lá é complicado. Lá ele vai penar um pouquinho", analisou.

Religião, cultura e conselho a Carille: peça dinheiro adiantado

Leandro Bonfim não joga mais profissionalmente desde 2015, quando se aposentou do futebol justamente jogando pelo Al-Wehda. Na época, também sofreu com as questões culturais.

Ex-Vitória, São Paulo, Vasco, Cruzeiro e Bahia, entre outros clubes, o meia-atacante chegou ao futebol saudita em 2013 para jogar no Al-Ittihad, da cidade de Jeddah. Quando se transferiu para o Al-Wehda, continuou morando na cidade, deslocando-se diariamente para treinar.

"A maior dificuldade, para mim, era ter que ir. Eu estava morando em Jeddah, era uma hora e meia para ir e uma hora e meia para voltar. No caso, eu demorava três horas de condução para poder me deslocar até a Meca, já que eu não poderia morar lá por não ser muçulmano. Essa foi a minha maior dificuldade, eu fiquei lá sozinho", disse.

O próprio Leandro Bonfim reconhece que "pode ter mudado alguma coisa" no clube desde que saiu em 2015. "Na época em que eu estava lá, estavam construindo o alojamento, o campo e a academia. Estavam tranquilos", diz. "Só não tinha um lugar para a gente descansar quando tinha treino integral", completa.

Leandro Bonfim no São Paulo - Fernando Santos/Folha Imagem - Fernando Santos/Folha Imagem
Ex-Vitória, São Paulo, Vasco, Cruzeiro e Bahia, Leandro Bonfim deixou o Al-Wehda em 2015; em dois anos na Arábia Saudita, morou em Jeddah, a 80 km da cidade do clube
Imagem: Fernando Santos/Folha Imagem

A situação em 2018 é financeiramente tranquila para os clubes sauditas, que são financiados pela Autoridade Geral de Esportes (principal entidade esportiva do governo local). Enquanto o órgão presidido por Turki Al Sheikh banca as equipes, a família real saudita quitou débitos anteriores, e ainda ofereceu ajuda financeira para que a liga local busque reforços, de forma a elevar o nível técnico local a curto e médio prazo.

Antes, a exemplo do que aconteceu com Felipe Adão, Leandro Bonfim também teve problemas para receber, e precisou recorrer à Fifa. Por isso, recomenda cautela ao técnico Fábio Carille.

"É um problema do mundo árabe: eles sempre atrasam. Eu saí brigado na justiça, na Fifa. Ainda não recebi do clube. Ficaram me devendo seis meses. Eu rescindi e cobrei o restante do contrato. Meu contrato ia até maio de 2015, e até hoje, mesmo entrando na Fifa, ainda não recebi isso", diz.

"Com a Fifa, é mais fácil receber, porque eles tiram pontos da equipe. Mas, a princípio, eu vou receber ainda nesta temporada, segundo o meu advogado. Agora, eu não sei te dizer qual foi a situação do Carille, mas é bom ele pegar um dinheiro adiantado na Arábia", aconselhou.