"Eu inventei Galvão Bueno"

Roberto Petri formou a primeira Mesa Redonda há 50 anos. Hoje, conta suas histórias, dramas e vitórias

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Gabriel Carneiro/UOL

Os fãs de futebol mais antigos escalam a formação original do Mesa Redonda como escalariam a seleção de 1970 ou o Santos de Pelé e Coutinho: Milton Peruzzi, José Italiano, Peirão de Castro, Roberto Petri e Dalmo Pessoa. A primeira exibição do programa (que está no ar até hoje na TV Gazeta) foi em março de 1970. Quase 50 anos depois, apenas os dois últimos estão vivos.

O mais velho entre eles é Petri, de 83 anos. Ele é o antecessor de Roberto Avallone na apresentação do programa que consolidou uma linguagem em vigor até hoje. Esteve em quase 20 veículos de imprensa como narrador, comentarista, repórter e até analista do futebol argentino. TV aberta e por assinatura, rádio, jornal e revista. Já não trabalha há dez anos, desde que perdeu tragicamente sua esposa e uma filha e sofreu dois AVCs. Ele ainda pensa em voltar aos microfones, mesmo com o legado já consolidado no esporte e no jornalismo em 57 anos de carreira.

Parte desse legado é ter lançado Galvão Bueno na TV, por exemplo. Mas a história de Roberto Petri vai muito além disso. E aqui, ao UOL Esporte, ele revisita sua vida e carreira. Sentado na confortável poltrona de uma casa de repouso onde ele mesmo escolheu morar para o resto de seus dias, ele sorri, se emociona e conta histórias como se tivessem acontecido ontem.

Quero viver bem. Chega uma hora em que o cara quer descansar, ter mais sossego na vida. Eu estou satisfeito assim.

Gabriel Carneiro/UOL

Discussão polêmica era com eles

Da esquerda para a direita, José Silveira, Flávio Iazetti, Roberto Petri, José Italiano, Milton Peruzzi, Barbosa Filho, Galvão Bueno e Dalmo Pessoa. Foi a formação do Mesa Redonda em 15 de agosto de 1975. Segundo Petri, era "uma equipe de caras que sabiam fazer discussão polêmica".

Os telespectadores tinham noção que cada um dos comentaristas era torcedor de um time, mas fingiam não saber. E os comentaristas sabiam que era possível perceber a inclinação de cada um, mas fingiam que eram "isentões". Eram outros tempos. Ou nem tanto assim...

"Quem inventou o Mesa Redonda foi a Gazeta, mas já tinha tido na TV Tupi antes, com o Milton Peruzzi. Era palmeirense. Já faleceu. Eu era substituto imediato dele e, depois que ele foi embora, eu passei para chefe e comandei por bastante tempo. Mais tempo que ele. Quando eu saí, entrou o Avallone, que também faleceu. Tinha o José Italiano, que era corintiano, o Peirão de Castro, que era santista. Eu comandava, mas todo mundo sabia que eu era são-paulino", diz, sem pudor. Seu último bolo de aniversário, aliás, foi temático do Tricolor.

"Cada um tinha seu clube e isso era usado, não era proibido. Aliás, a razão do sucesso era essa, deu certo por isso."

Gazeta Press/Acervo Gazeta Press/Acervo

A invenção de Galvão Bueno

Fiz concurso de monte na Gazeta. Toda hora precisava de gente. O Galvão Bueno foi descoberto em um concurso que realizei. Ele ganhou como melhor comentarista. Depois que ele começou a narrar. Mas o que ele manda bem mesmo é nos outros esportes. O automobilismo, por exemplo. Mas aí começou a fazer futebol e fez bem

Roberto Petri, sobre a descoberta de Galvão Bueno

Não posso falar mal porque fui eu que inventei o Galvão Bueno. Ele, como profissional é bom, eu respeito. E ele também me respeita. Revelei também o Flávio Prado. É um gosto que tenho. Hoje acompanho ambos, são minhas preferências. Também vejo muito o Jota Júnior, porque ele é um bom narrador

Roberto Petri, sobre o que vê na TV hoje em dia

Foi num concurso criado por Roberto Petri e dirigido por Milton Peruzzi que pude ser escolhido como comentarista e aí começou toda essa minha história

Galvão Bueno, em entrevista à Rádio Gazeta AM, em 2018

Acervo/Gazeta Press

"Um dia eu estava no campo da Portuguesa, atrás do gol, fazendo reportagens em Portuguesa x São Paulo. Cinco metros atrás de mim tinha a grade. E um cara falando: 'ô Petri filha da puta', 'Petri cornudo', 'Petri são-paulino descarado'. Era primeiro tempo ainda, o jogo em andamento. Eu olhei bem e marquei o rosto dele. Era um português de chapéu. Sabe aquela grade de estádio em que a mão cabe direitinho? Eu fui andando no fim do primeiro tempo para o vestiário enquanto ele xingava qualquer jogador da Portuguesa. Eu fui sorrateiramente e dei um soco na boca dele. Simples assim. Depois ele veio com um montão de polícia, disse que ia me matar. Mas não saiu sangue nem nada, eu estou aqui e esse cara tenho certeza que nunca mais xingou ninguém".

Roberto Petri, jornalista esportivo. E são-paulino.

Divulgação/Flore D'Alliance

AVCs causaram mudança de rotina

Roberto Petri está longe da rotina de estádios e estúdios. Aos 83 anos, vive a tranquilidade de uma casa de repouso na Zona Norte de São Paulo por decisão própria.

Casado com Carmelina desde 1963, ficou viúvo em 2007. No ano anterior, tinha perdido sua filha mais velha, Claudia Regina, assassinada. Os outros três filhos, Mônica, Beto e Bruno, já eram adultos e viviam com suas famílias. Petri morava sozinho quando passou mal em casa. Foi levantar para ir ao banheiro e caiu no chão. Era um AVC. Recuperou-se, mas um ano depois sofreu o mesmo problema. "A empregada me achou no chão. Aí que eu fui tomar providências. Cheguei à conclusão que não dava mais para ficar sozinho", conta.

"Teria que contratar uma equipe para ficar comigo e isso é muito caro. Para casa dos filhos não fui, opinião minha. Todos ofereceram, mas eu não quero. É aquela história: quero viver bem com a nora, entendeu? Se o cara ficar envolvido com família, problema de neto, ele não para, morre logo. Conversei com vários amigos e médicos que estar em um lugar como esse era o melhor para mim. Em quatro anos só fui parar no hospital uma vez", diz o jornalista, cujo único problema de saúde hoje é a dificuldade para locomoção. Ele faz fisioterapia para voltar a andar.

Reprodução

"Tem coisa que não dá para recuperar"

Cláudia Regina Petri foi encontrada morta no fosso do elevador do prédio onde vivia, em Santos, em 28 de agosto de 2006. O elevador estava travado. Quando técnicos responsáveis pela manutenção foram investigar o problema, encontraram o corpo da mulher de 42 anos junto com um travesseiro e um edredom. Ela era a filha mais velha de Roberto Petri. "Foi uma tragédia, eu sofri muito", diz o jornalista, que na época tomou a frente para encontrar culpados e pagar advogados.

Denunciado pelo homicídio, o ex-policial Wagner da Cunha foi condenado a 21 anos e quatro meses de prisão já em abril de 2013. Aos 35 anos de idade na época do crime, ele era marido da vítima. Foi tudo premeditado, segundo a Justiça: ele falsificou documentos para comprar uma arma, um carro, uma moto e fazer um seguro de vida em que ele seria o único beneficiário um mês antes do crime. Um dia antes de o corpo ser encontrado, Cunha perguntou por ela na portaria do prédio. À noite, segundo o juiz responsável pela sentença, a empurrou do oitavo andar do prédio.

Wagner da Cunha defendeu-se dizendo que a contratação do seguro de vida foi feita por Cláudia como prova de amor. Não convenceu. De acordo com a família da vítima, ela estava descontente com o relacionamento. Uma amiga ainda disse que era sabido que ele tinha caso com outra mulher.

Tem coisas que não dá para recuperar. Minha viuvez e minha filha mais velha, que foi morta pelo marido em Santos, são essas coisas. (O assassino) Era um sem vergonha, ex-policial que a primeira coisa que fez depois que casou, porque ela ganhava muito bem como advogada e oficial de justiça, foi se encostar, queria o dinheiro todo para ele, não queria trabalhar

Roberto Petri, sobre o assassinato da filha

O cara chegou na porta do elevador, sabia abrir, e jogou ela do elevador, do oitavo andar para baixo. Foi uma tragédia, muito ruim para todos nós. Ela foi avisada de que não estava certo, mas ela se apaixonou e ficou com um cara desses. Eles tiveram uma filha, hoje tem 12 anos, é criada pelas irmãs do cara. A família também é contra o que ele fez, mas não adianta nada

Roberto Petri, que não tem contato com a neta

Reprodução/Facebook

Desavença do pai com Juvenal "queimou" filho que é treinador

Bruno Petri foi o único a seguir a paixão do pai por esportes. Ele não é jornalista, mas treinador de futebol. Dos outros filhos, uma é procuradora do Estado e o outro é administrador de empresas. No futebol, Bruno trabalha principalmente em categorias de base: foram dez anos no São Paulo, quatro no Palmeiras e dois no Fluminense. Ajudou a formar jogadores como Hernanes, Casemiro, Gabriel Jesus, Lucas, Oscar e tantos outros.

Com Casemiro, titular do Real Madrid e da seleção brasileira, a relação de gratidão virou amizade e Bruno é seu padrinho de casamento.

"Foi o Juvenal Juvêncio, que não gostava de mim, que mandou ele embora do São Paulo. Ele tinha títulos dentro e fora do Brasil, revelou jogadores, é um bom técnico. Não tinha motivo. Eu desconfio que o Juvenal não gostava de mim porque eu criticava ele, chamava de Juju, dizia que ele tomava whisky antes de ir para o treino. Ele não gostou porque era realidade (risos). Aí ele soube que o Bruno era meu filho e sorrateiramente mandou o rapaz embora", acusa Roberto Petri.

Juvenal Juvêncio foi presidente do São Paulo nos anos entre 1988 e 1990 e de 2006 a 2014, além de diretor de futebol em várias oportunidades. Bruno Petri trabalhou no clube entre 1999 e 2010. Hoje, gerencia um centro de orientação e formação de atletas. O ex-presidente tricolor morreu em dezembro de 2015, aos 81 anos.

"Não é fácil ser treinador tendo um jornalista esportivo conceituado como pai. Ele não assistia aos jogos, dizia que não queria atrapalhar porque muita gente não gostava dele pela contundência dos comentários. E para não aumentar a cobrança sobre mim ele preferia não ver. Demorei a entender, mas vi que era para me ajudar e aprendi muito com ele. É um ídolo para mim", diz o filho técnico, hoje com 48 anos.

Acervo pessoal

Primeira Copa do Mundo na latinha

Roberto Petri assistiu a Copa do Mundo de 1950 aos 14 anos como torcedor. Foram seis jogos no Pacaembu e ele se lembra de ter marcado presença na maioria. Não só para assistir... "Nos jogos em que não tinha muita lotação, eu ficava irradiando o jogo numa latinha, tinha até comentarista. Brincadeira de criança, mas mostrava que eu queria ser isso mesmo". Ele gostava de ouvir futebol no rádio e narrava jogos de botão com amigos: "Fazíamos campeonatos no bairro da Consolação e eu irradiava. Os anos foram passando e continuei com essa mania".

Aos 17 anos, recusou-se a fazer faculdade de Jornalismo porque "disseram que eu sabia mais que os caras da ativa" e passou a fazer testes e concursos para trabalhar na área. Foi reprovado na Jovem Pan. "Era um concurso com 400 candidatos e fui mal. Eu tinha um texto para ler e nele tinha United States. Eu li 'Iuneited States' e o pessoal me cortou", lembra. Pouco depois mais um teste, desta vez na Rádio Bandeirantes, sob o comando de Fiori Gigliotti: "Esse eu ganhei de ponta a ponta. Mas depois descobri que não tinha salário, só trabalho. Aí eu me mandei."

Acervo pessoal Acervo pessoal
Acervo pessoal

"Craque na bola, craque na escola".

Roberto Petri trabalhou em quase todos os lugares onde dava. Da Rádio Bandeirantes foi para a Rádio Tupi e depois para a TV Tupi. Acumulou empregos: Difusora, Excelsior, TV Cultura, TV Gazeta, TV Nacional, ESPN Brasil, jornais Última Hora, Diário da Noite, Diário de São Paulo, Mundo Esportivo, Popular da Tarde, Jornal Equipe, Revista Player, Jornal Sports, Gazeta Esportiva, Jovem Pan (onde tinha sido recusado em 1953). Foi até proprietário de um jornal, o "Semanário Equipe", de 1962 a 1966. Faliu.

Além do comando do Mesa Redonda, outro momento foi marcante: as transmissões do campeonato "Futebol Dente-de-Leite" na TV Tupi. Em 1969, Petri e Ely Coimbra (com apoio dos também jornalistas Sergio Baklanos e José Astolphi) propuseram ao canal a criação de um campeonato para crianças entre 12 e 14 anos. A Federação Paulista de Futebol não tinha nada para esta idade.

Cassiano Gabus Mendes, autor de novelas famosas ("Anjo Mau", "TiTiTi" e "Que Rei Sou Eu?", por exemplo), era o diretor da emissora. Topou a empreitada, desde que as crianças comprovassem que estudavam. Aí que nasceu o slogan "Craque na bola, craque na escola".

Petri e Coimbra ganharam prêmios e dinheiro com a marca registrada, que espalharam de São Paulo para o Rio de Janeiro. E talvez mais importante do que isso: revelaram jovens talentos para o futebol. Muricy Ramalho, que brilhou como jogador e treinador, é o maior exemplo e orgulho: "Na minha atuação como repórter, comentarista e narrador eu não ganhei nenhum prêmio como o Roquete Pinto e o Imprensa. Ganhei pelo Dente de Leite. Foi algo maravilhoso, muitas emoções." O Futebol Dente-de-Leite ficou no ar até 1978. Voltou pelas mãos de Luciano do Valle, esteve na Gazeta e na Bandeirantes, mas não foi mais o mesmo.

Eu acho que sou melhor comentarista. Tanto em jornal quanto em rádio e TV. Sou mais comentarista do que narrador e repórter, mas sei fazer as três coisas e consegui fazer com prática, trabalho e aprendizado. Eu aprendi trabalhando, é mais fácil assim. No começo você sofre, fala errado, vibra menos ou mais. Mas tudo isso você aprende

Roberto Petri, jornalista esportivo

Acervo pessoal

Uma história que não chegou ao fim

Flávio Prado, jornalista da TV Gazeta e da Rádio Jovem Pan, sugeriu que o amigo Roberto Petri contasse pequenas histórias semanais sobre sua experiência na cobertura de sete Mundiais para serem transmitidas nos veículos. Seriam participações curtas deste veterano que já não trabalha desde 2010, quando deixou a Rádio Trianon AM 740 após todos os dramas da vida pessoal.

"Seria uma grande distração para mim, mas eu não estava bom. Falando desse jeito não dá. Estou em tratamento, ainda não me recuperei totalmente. Não posso gaguejar, parar, titubear, tem que ser como era quando eu fui profissional", conta, orgulhoso.

Esses formatos curtos, de pequenas pílulas de conteúdo, atraem o jornalista: "O Gil Gomes fazia, o Zé Paulo de Andrade faz, o Avallone fazia também. Algo do tipo: três minutos de comentários do Roberto Petri. Se eu continuar lúcido, gostaria de fazer isso ainda. Foram mais de 50 anos ininterruptos. Pouca gente consegue se manter, então eu tenho esse título."

Ele continua como sempre foi: inquieto.

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