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Ditadores e Azerbaijão ajudam a contar ascensão do Atlético de Madri

Guilherme Costa

Do UOL, em São Paulo

23/05/2014 06h00

O Atlético de Madri é um fato novo na temporada 2013/2014 do futebol espanhol. Campeão nacional e finalista da Liga dos Campeões da Uefa, o time dirigido pelo argentino Diego Simeone conseguiu interromper a bipolarização do país a despeito de estar distante da realidade financeira de Real Madrid e Barcelona, clubes que mais faturam no planeta. Menos rica e mais aguerrida, a equipe madrilena só não pode ser vista como coitadinha. A história de ascensão dos “colchoneros” está diretamente ligada à participação de líderes totalitários.

O caso mais recente e mais significativo para o atual Atlético de Madri é o do patrocínio máster. O time madrileno tem contrato com o governo do Azerbaijão, país egresso da União Soviética que tem pouco mais de 9 milhões de habitantes e conta com grandes reservas de gás natural e petróleo.

O Azerbaijão é governado desde 31 de outubro de 2003 por Ilhan Aliyev. Ele assumiu o poder após a morte do pai, Heydar Aliyev, que havia presidido o país entre 1993 e 2003 – mas que também havia sido o principal dirigente nacional de 1969 a 1982.

Ilhan é sustentado no poder por eleições, mas esses processos foram envoltos em polêmicas. Em 2013, por exemplo, ele recebeu 85% dos votos válidos. Segundo pesquisa da IEOM (sigla em inglês para Missão Internacional de Observação de Eleições), o mandatário era avaliado como ruim ou muito ruim por 58% da população. A entidade identificou problemas em listas, protocolos e resultados do pleito.

Relatório da OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa) também apontou irregularidades, como votos para a oposição que foram contabilizados  para a situação. O documento ainda relatou restrições ao trabalho da imprensa.

Na próxima semana, o secretário-geral do Conselho da Europa, Thorbjorn Jagland, fará uma visita a Baku, capital do Azerbaijão. A liberdade ao trabalho da imprensa será um dos principais assuntos da viagem – o tema ganhou relevância depois da prisão de Perviz Hashimli, do diário Bizim Yol (“Nosso caminho”, em tradução livre), veículo contrário ao governo. Hashimli, membro do partido oposicionista Frente Popular do Azerbaijão, foi condenado a oito anos de detenção por posse ilegal e tráfico de armas. Os correligionários do jornalista defendem que as acusações são falsas e que foram plantadas para cercear o trabalho investigativo dele.

A renda per capita anual do Azerbaijão subiu de US$ 1.844 para US$ 8.153 entre 1995 e 2013 – o país tornou-se independente da União Soviética em 1991. No entanto, a ascensão econômica contribuiu pouco para indicativos sociais. O país passou a ter mais dinheiro, e isso apenas aumentou a distância entre ricos e pobres. Segundo relatório publicado em 2013 pela ONU (Organização das Nações Unidas), a nação governada por Aliyev tem apenas o 82º IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta – o Brasil é o 85º colocado do ranking.

A pesquisa da ONU ainda apontou que o índice de satisfação da população do Azerbaijão com a vida atual é 4,7 (sendo 0 o menos satisfeito e 10 o mais satisfeito). No Brasil, por exemplo, a taxa é 6,8.

O índice de satisfação com liberdade de escolha no Azerbaijão é outro dado que ilustra a situação do país: 49% dos habitantes aprovam o atual estágio. Usando o Brasil mais uma vez como parâmetro, 80% da população local diz estar feliz nessa seara.

“Olhando pelo lado do time, fica uma incógnita. Dinheiro é sempre bom, mas até que ponto é bom associar sua marca a um dinheiro vindo de um país com essas características? O Atlético de Madri é uma marca muito forte, e os dirigentes têm de saber com quem estão se associando. Não apenas no curto prazo, mas isso é algo que vai ficar registrado para sempre. No futuro, as pessoas verão imagens do time desta temporada e verão a marca do Azerbaijão”, lembrou Fabio Interaminese, sócio e diretor de atendimento da operação brasileira da agência Works, que trabalha com branding no esporte.

“Temos um caso recente no Brasil, que é o do Botafogo. Eles assinaram um contrato com a Telexfree, uma empresa associada a denúncias sobre esquemas de pirâmide financeira. Às vezes, a mentalidade imediatista dos dirigentes é um risco muito grande para os atributos que formam a imagem do clube”, completou o executivo.

A relação do governo do Azerbaijão com o Atlético de Madri começou em 2012, quando o país estampou seu nome e o slogan “Land of fire” (“Terra de fogo”, em tradução livre) na camisa da equipe “colchonera” em um clássico contra o Real Madrid. O aporte pontual evoluiu para um patrocínio máster na temporada 2013?2014, e em janeiro deste ano o negócio foi estendido até o meio de 2015. O valor desembolsado pelo governo nunca foi anunciado oficialmente, mas o jornal espanhol “El País” publicou que o time madrileno recebe 12 milhões de euros por ano.

A importância desse montante para o Atlético de Madri pode ser medida pelo estudo “Football Money League”, produzido anualmente pela consultoria Deloitte. Na versão publicada em 2013, referente aos balanços da temporada 2012?2013 (portanto, antes do patrocínio), o time da capital espanhola foi apontado como o 23º faturamento do futebol mundial (107,9 milhões, quase cinco vezes inferior aos 512,6 milhões de euros de receita do Real Madrid). No ano seguinte, os “colchoneros” obtiveram 120 milhões de euros e saltaram para o 20º lugar (o Real, ainda líder, ganhou 518,9 milhões de euros).

O estudo aponta como principal motivo para a evolução do Atlético de Madri justamente a receita comercial. O patrocínio do Azerbaijão puxou uma alta de 39% para o clube nesse segmento – o contrato com a Nike também foi reformulado.

“É interessante notar como esse mundo do commodity financeiro é atualmente a principal fonte de receita do futebol europeu. O dinheiro vem de regiões como o Qatar, a Rússia ou o Azerbaijão, por exemplo. Você não fala em mercado livre ou em uma estratégia de marketing muito avançada. Não é assim que funciona em commodities. O perfil de uma nação pequena, com muita reserva natural concentrada nas mãos de poucas pessoas, é uma espécie de padrão. No fundo, isso acaba influenciando toda a indústria, que vira mais um mecenato do que mercado”, ponderou PHD em indústria do futebol pela Universidade de Liverpool e ex-diretor de marketing do Coritiba.

O perfil do investidor, segundo Seitz, dificulta qualquer análise sobre estratégia na associação do Atlético de Madri com o governo do Azerbaijão: “Você tem, sim, países que utilizam o futebol como plataforma de maneira um pouco mais leve. São estratégias diferentes e mais baratas, e aí se justificam. Agora, você não pode usar um clube para isso. Não faz o menor sentido mercadológico. Geralmente, isso reflete apenas uma vontade de quem comanda o país. Não tem necessariamente um fim”.

Seitz ainda afirmou que o negócio pode ter um sentido muito mais local do que internacional. “Dificilmente os atributos do futebol vão contribuir diretamente para o país. Se você estabelecer uma relação entre consumo de produtos, turismo e atributos que o futebol entrega como plataforma, vai ver que eles não conversam muito. É mais uma questão de awareness [reconhecimento de marca]. E em geral, a mídia desses países é carregada de campeonatos que eles patrocinam. Então, menos do que aparecer para o mundo, o que eles querem é demonstrar para o próprio país o quanto eles têm poder”, explicou o pesquisador.

No anúncio oficial do primeiro contrato de um ano, Atlético de Madri e o governo do Azerbaijão disseram que o negócio serviria para fomentar o turismo no país soviético. Além disso, anunciaram que haveria clínicas e eventos com as duas marcas.

O Azerbaijão já deu indícios de que o Atlético de Madri pode ser apenas um primeiro passo. A Socar, petroleira estatal do país, será uma das patrocinadoras da Eurocopa de 2016, que será disputada na França. E de acordo com a agência de notícias “Associated Press”, o governo de Aliyev já iniciou articulação com a Uefa para que Baku seja uma das sedes da competição em 2020 – a entidade continental anunciou que fará o torneio em várias cidades, e não apenas em um país.

“O futebol é muito importante para o país e para o presidente. Ele assinou um decreto para o desenvolvimento do futebol no Azerbaijão, com um plano que vai de 2005 a 2015. Há um investimento em infraestrutura, mulheres e jovens”, relatou Elkhan Mammadov, secretário-geral da Associação de Futebol do Azerbaijão, em entrevista à “AP”.

Líderes polêmicos fazem parte da história do Atlético de Madri

O Atlético de Madri foi fundado em 1903 como Athletic, nome alusivo ao Athletic de Bilbao. O time da capital espanhola funcionou como uma espécie de filial dos bascos até os anos 1920, e a dissociação entre as duas equipes resultou na maior crise financeira da história dos “colchoneros”.

A situação só começou a mudar em 1939. Havia um grupo de jogadores da Aeronáutica disposto a disputar competições profissionais de futebol, mas a Federação Espanhola queria que eles começassem por divisões inferiores. A cúpula do Atlético de Madri, que não tinha como custear a formação de um elenco, propôs uma fusão: surgiu então o Atlético Aviación.

A mudança de Athletic para Atlético deve-se a um decreto do general Francisco Franco, ditador que governou a Espanha entre 1938 e 1973. E a ascensão do líder totalitário tem peso na ascensão dos “colchoneros”.

O jornalista espanhol Santiago Segurola chegou a dizer que Franco não era um aficionado por futebol: “Ele tinha sede de sangue e gostava de assistir a filmes, mas não tinha interesse por esporte. Ele preferiria execuções a jogos”.

Contudo, há publicações espanholas que citam Franco como torcedor do Real Madrid e do Atlético de Madri. E todas reconhecem o notório uso que o ditador fez do futebol como instrumento de integração nacional.

Quando Franco chegou ao poder, os centros mais fortes do futebol espanhol eram Catalunha (Barcelona) e País Basco (Athletic Bilbao), duas regiões com forte sentimento localista. O ditador tinha interesse especial no desenvolvimento dos times de Madri. Era uma fomentar a unidade nacional, afinal.

Além de ser oriundo de Madri, o Atlético aproximou-se de Franco por causa da presença dos jogadores do Aviación. Os “colchoneros” conquistaram na temporada 1939?1940 o primeiro título de sua história no Campeonato Espanhol.

No fim dos anos 1940, o Atlético já havia se consolidado como uma das principais forças do futebol espanhol. Foram dois títulos nacionais seguidos (1949?1950 e 1950?1951) conquistados pelo time dirigido pelo argentino Helénio Herrera. Esse período de bonança, entretanto, durou apenas até a segunda metade da década seguinte. A crise estava de volta.

Novamente em uma situação conturbada, o Atlético de Madri foi salvo por outro líder longevo. Vicente Calderón, empresário que havia começado como vendedor de sapatos e ascendido rapidamente, passando por segmentos como construção, indústrias químicas e agricultura, assumiu a presidência do clube em 1964.

Foi Calderón o responsável pela construção do estádio do Atlético de Madri, que foi inaugurado em 1966 e recebeu o nome do presidente. Também foi ele que moldou a equipe que conquistou dois títulos da Copa do Rei e três do Campeonato Espanhol nos anos 1970. Nesse período, os madrilenos ainda chegaram à única decisão da história do clube na Liga dos Campeões da Uefa – em 1974, contra o Bayern de Munique, que ficou com a taça.

Em dois mandatos, Calderón presidiu o Atlético de Madri por 21 anos. Quando ele morreu, em 1987, ainda era mandatário do clube. E aí surgiu mais um personagem controverso na história dos “colchoneros”: Jesús Gil y Gil.

Nascido em família humilde em 1933, Gil y Gil começou a trabalhar como repositor em lojas e também teve ascensão célere. Em 1969, porém, deu início a uma enorme lista de polêmicas quando um prédio desabou e 52 pessoas morreram soterradas. Proprietário do empreendimento, que não tinha licença e estava irregular em uma série de aspectos, o executivo foi preso por homicídio culposo e só saiu em 1971, quando recebeu indulto de Franco após pagamento de indenização.

Gil y Gil assumiu a presidência do Atlético de Madri em 1987, apenas seis anos depois de virar sócio do clube. Nos anos seguintes, acumulou o cargo com carreiras prolíficas na construção e na política. Além disso, foi apresentador de um programa de TV.

O Atlético de Madri de Gil y Gil conquistou o Campeonato Espanhol na temporada 1995?1996 e venceu três edições da Copa do Rey (a última delas, também em 1995?1996). Nos anos seguintes, contudo, o time sucumbiu à medida em que seu principal dirigente começou a se afundar em escândalos.

Em 1999, Gil y Gil foi preso por crimes como desvio de dinheiro público, peculato e fraude imobiliária. Em dezembro do mesmo ano, o governo espanhol destituiu o empresário da presidência do Atlético de Madri e determinou intervenção judicial no clube. Na temporada 1999?2000, os “colchoneros” foram rebaixados para a segunda divisão do Campeonato Espanhol.

O escândalo teve novos capítulos em 2000, ano em que Gil y Gil foi condenado por prevaricação e passou mais seis meses na prisão. Nessa época, ele teve de deixar também a prefeitura de Marbella.

Jesús Gil y Gil ainda chegou a ocupar novamente a presidência do Atlético de Madri, mas apresentou demissão em 2003, menos de um ano antes de morrer. Foi sucedido por Enrique Cerezo, que comanda o clube até hoje.

A trajetória de Cerezo no Atlético de Madri, na verdade, é bem mais longeva. Produtor de cinema e proprietário de uma emissora de TV, ele ocupava a vice-presidência da equipe madrilena desde 1987.

Até por todo o período em que foi vice-presidente, Cerezo era intrinsecamente ligado a Gil y Gil. Prova disso é que Miguel Ángel Gil Marín, herdeiro do ex-mandatário, é até hoje uma das figuras mais relevantes do clube.

A gestão de Cerezo e Gil Marín no Atlético chegou a ser chamada na Espanha de “bicefalia” (em português, deformidade que consiste na existência de duas cabeças num mesmo corpo). O conselho de administração do clube ainda tem Severiano Gil y Gil e Óscar Gil Marín, ambos ligados ao ex-presidente.

As polêmicas dos últimos anos de Gil y Gil respingaram em Cerezo. Acusado de apropriação indevida de ações do Atlético, o atual presidente escapou porque o crime estava prescrito.

Entender a influência desses líderes é fundamental para entender o atual Atlético de Madri. O time que enfrentará o Real Madrid no próximo sábado, na decisão da Liga dos Campeões da Uefa, pode estar muito longe do poder econômico do rival. Só não pode ser visto como um coitadinho.

A decisão da Liga dos Campeões da Uefa será disputada às 15h45 (horário de Brasília), em Lisboa. O placar do UOL Esporte acompanhará o jogo ao vivo.