Em Heliópolis, 190 mil pessoas e mais de 40 times dividem um só campo de futebol

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

  • Milton Flores/UOL Esporte

    Campo de Heliópolis: terreno foi cedido por hospital, mas ainda não foi regularizado

    Campo de Heliópolis: terreno foi cedido por hospital, mas ainda não foi regularizado

Quem nunca andou pelas ruas da comunidade de Heliópolis se surpreende com a importância que o futebol exerce na comunidade. As ruas estreitas abrigam, a cada esquina, um time de futebol diferente. Os nomes vão desde homenagens a novelas, como o Cantareira, até a turma de amigos que se reuniam para tomar umas e outras, como o Bafômetro.

São mais de 40 equipes estruturadas dentro da comunidade, com sede própria e estatuto. Mas, apesar do tamanho de Heliópolis, na área da maior favela de São Paulo só existe um campo de futebol para atender às necessidades esportivas de mais de 190 mil moradores.

CRAQUE DE HELIÓPOLIS

  • AFP/Karim Sahi

    O volante Magrão, revelado pelo São Caetano e com passagens por Palmeiras, Corinthians e Internacional, é um dos craques de Heliópolis. Ele deixou a comunidade pelo futebol profissional e até hoje, quando volta ao país, passa por Heliópolis para rever os amigos dos tempos de infância. Hoje no Al-Whada, o volante se identifica muito com o futebol de várzea da comunidade onde cresceu e se identifica com o Ratata, time que já jogou a Copa Kaiser, mas hoje está suspenso por problemas disciplinares.

"Campo mesmo, só temos um. Temos algumas quadras, mas todas pequenas. O campo original era na área onde hoje ergueram o hospital. Fizemos um acordo para construir no terreno, mas até agora não temos oficializado que esse local é da comunidade. Por isso, consideramos o campo como área invadida", explica Edson Arthur da Silva, diretor do Cantareira.

O terreno fica ao lado do Complexo Hospitalar de Heliópolis. É administrado pela Associação Heliópolis Social e Lazer, entidade que une alguns dos principais times da comunidade. O terreno, porém, por não ser legalizado, não tem água ou luz. A infraestrutura é doada pelo hospital: uma torneira para os atletas e ligações de eletricidade improvisadas nas salas de administração e zeladoria. "O problema do campo é só um reflexo dos problemas gerais de Heliópolis. Hoje, nossa principal reivindicação é justamente a regularização fundiária. Você pode ter uma casa, mas não tem os papéis. Então, oficialmente, é uma invasão. Hoje, temos agências dos Correios, bancos, consórcios. Mas os terrenos e as casas ainda precisam de regulamentação", fala Fabio José da Silva, líder comunitário e parte da diretoria do Festpan, um dos times da comunidade.

Apesar da estrutura precária, o campo de futebol invadido exerce duas funções primordiais dentro da favela: o lazer para as crianças e a união entre rivais históricos (e, consequentemente, dos moradores). "As crianças da comunidade não tem muitas opções de lazer. Hoje, temos um trabalho que atinge quase 1000 garotos. Eles estão aprendendo futebol em um momento em que poderiam estar na rua. Estão livres de influências que poderiam ser negativas. Além disso, o futebol é um espaço de união. Esse campo tem dois anos e ajudou muito a unir as pessoas. Antes, a rivalidade era enorme. Hoje, estamos juntos na administração desse espaço. É a prova de que dentro de campo, você luta pela vitória. Mas fora, pode estar junto com seu adversário, se divertindo e tomando uma cerveja como amigo", explica Luciano Cirino, o Léo, diretor da Associação e da equipe do Bafômetro.

A rivalidade a que Léo se refere teve um episódio marcante há cerca de um ano. Cantareira e Bafômetro são os dois times de maior sucesso na Copa Kaiser, o principal torneio do futebol amador de São Paulo. Atualmente, sete times de Heliópolis disputam o campeonato. Só a dupla segue na primeira divisão. Os outros, Garotos da União (que caiu neste ano), Festpan, Social, Ressaca e Bela Vista estão na Série B - o Ratatá também disputava o torneio, mas está suspenso por motivos disciplinares.

CLÁSSICO NA COPA KAISER NO SÁBADO

  • Milton Flores/UOL Esporte

    No próximo sábado, a comunidade de Heliópolis estará em festa. Dois times da favela vão se enfrentar pela Copa Kaiser: Festpan e Social tem duelo marcado para 14h no campo do Anhanguera, na Zona Sul da cidade. Quem também está na Série B são os times do Ressaca, que estreia contra o Unidos da Praça de AE Carvalho no domingo. O único que já estreou na segunda fase é o Associação Bela vista, que empatou em 0 a 0 com o Guitta Cuca Fresca da Vila Matilde.

    Na Série A, os dois times de Heliópolis também jogam no domingo. O Cantareira, que já ficou entre os 20 melhores da Kaiser, enfrenta o R-2 Debony às 13h no campo do CDM Cleuza Bueno. Ao mesmo tempo, o Bafômetro encara o Beiura Rio, da Vila Brasilina, no CDM Dorotéia.

     

Nesse cenário, no programa "A Liga", da Bandeirantes, Edson chamou o Bafômetro de "inimigos". "Foi uma das maiores besteiras que fiz. Chamei os caras de inimigos e depois tive que consertar. No fim das contas, acabou sendo bom. Foi a oportunidade de sentar, aparar as arestas e garantir que a rivalidade ficasse só no campo. O futebol é um caminho muito bom para agregar as pessoas, para atrair incentivos para ajudar a comunidade. Hoje, o futebol de Heliópolis está fazendo isso", fala Edson.

E o campo é uma das maiores provas de como o futebol está trabalhando ao lado das lideranças comunitárias para trazer benfeitorias para Heliópolis. A cada fim de semana, por exemplo, acontece a Copa Heliópolis, que reúne os 12 principais times da favela. E, graças à união entre as equipes, uma empresa de telefonia patrocina o campeonato e traz dinheiro para os projetos do próprio campo.

Há três meses, também, um dos clubes da Série B da Kaiser, o Social, criou o seu projeto para as crianças. "Temos cerca de 50 alunos na nossa escolinha, com crianças de 7 a 16 anos. Nosso objetivo é trazer essa molecada para o esporte, tirar da rua. As crianças veem as camisas do time, perguntam. É uma forma de criar uma identidade dentro da comunidade", afirma o diretor do Social, Natanael Costa, o Pistolinha.

Nesse cenário, não é de se espantar que boa parte das lideranças comunitárias estejam ligadas ao futebol. Edson, do Cantareira, por exemplo, é diretor da Biblioteca comunitária de Heliópolis, da Unas, parte do projeto "Identidade Cultural de Heliópolis", que conta com o auxílio de Ruy Othake. O arquiteto, entre outras ações, desenhou os prédios redondos que fazem parte do plano de reurbanização da favela e os edifícios do Polo Cultural, que reúne cinema, teatro e oferece aulas esportivas e culturais para crianças. "Aos poucos, as pessoas estão percebendo a força que Heliópolis tem. E o futebol faz parte dessa força. Os times só recebem da comunidade. E estão percebendo que também podem fazer muito. No Cantareira, por exemplo, vamos fazer uma partida para arrecadar livros para a biblioteca. São ações simples, mas que ajudam. O futebol pode ajudar", diz Edson.

Também do Cantareira, Emerson Santana, o Macarrão, trabalha no Conselho Tutelar, também é líder comunitário e resume o papel do futebol em Heliópolis. "É o local onde você se encontra com seus amigos. Onde as crianças ainda têm sonhos, ainda sonham em virar estrelas do futebol. Traz um elemento de autoestima que ajuda muito a quem mora aqui".

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