Futebol de várzea foge do centro e encontra abrigo na periferia de SP

Bruno Doro e David Abramvezt

Do UOL, em São Paulo

  • Arte/UOL

    Em São Paulo, concentração dos campos de várzea aumenta com a distância do centro

    Em São Paulo, concentração dos campos de várzea aumenta com a distância do centro

Se você mora nas regiões centrais de São Paulo, certamente acha que o futebol de várzea acabou. Mas é só andar um pouquinho mais pela cidade, chegar até a periferia, para perceber que essa noção não é exatamente verdadeira. Você sabia que existem mais de 500 campos municipais de futebol?

UOL Esporte usou informações da Prefeitura da capital paulista para montar um grande panorama do futebol de campo na cidade. Levando em conta os CDCs (Clubes da Comunidade), os Clubes Escola e os parques públicos, a reportagem mapeou 298 locais para a prática da modalidade - os demais campos, mais de 200, ainda estão em processo de reconhecimento pelos órgãos públicos.

Isso quer dizer que São Paulo tem um campo para cada 37 mil pessoas – sem contar as instalações esportivas privadas, aquelas localizadas em terrenos do governo do estado ou em terrenos municipais geridos por outros modelos. Pode parecer um número pequeno, mas lembre do seguinte: a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) considera que 16% da população brasileira é praticante de futebol. Com isso, a capital paulista oferece um campo para cada seis mil praticantes da modalidade.

Esse número pode não atender a todos, mas comprova que a percepção paulistana de que a várzea está morrendo não é exatamente correta. O levantamento do UOL mostra uma região envolvendo o centro da cidade e bairros mais ricos, em que a incidência de campos é menor. Das oito sub-regiões da cidade com IDH superior 0.9 (os índices mais altos de São Paulo), só duas, Lapa e Mooca, tem mais de dez campos públicos.

Na prática, os bairros mais ricos da cidade expulsam o futebol de várzea, enquanto os bairros mais pobres o acolhem. "É um processo inevitável. Na medida em que os bairros foram se tornando nobres, grandes terrenos não poderiam mais se 'dar o luxo' de permanecerem exclusivamente destinados ao futebol amador. O processo que se deu, sobretudo ao longo dos últimos setenta anos, contrapôs radicalmente áreas valorizadas, bairros nobres e espaços ociosos, com os campos de várzea. O espaço tornado mercadoria se transformou, também na cidade de São Paulo, em uma raridade. Tal produto, tão valioso e raro, não poderia seguir sendo destinado aos jogos de futebol", explica Glauco Gonçalves, que apresentou a tese de mestrado "A crise da cidade em jogo: o futebol na contramão em ruas da Penha", sobre a prática do futebol em um bairro da zona leste.

Com isso, à medida que a distância para o centro vai aumentando, também aumenta o número de campos. Voltando a usar o Índice de Desenvolvimento Humano como parâmetro, entre as dez regiões com os piores resultados sociais, cinco delas têm mais de dez campos. Isso mostra como as regiões de menor poder aquisitivo ainda encontram valor nos campos de futebol.

"Em bairros periféricos, os campos de várzea (alguns mais do que outros) cumprem ainda um papel de suma importância", diz Gonçalves. O geógrafo conta que, no passado, campos eram o ponto central da vida nos bairros, recebendo não só futebol, mas festas e eventos sociais, transformando-se em "lugar de encontro, apropriação e sociabilidade". Hoje, esse fenômeno não é mais tão forte, mas segue funcionando: "Além de jogar, é possível permanecer, fazer amigos, jogar outros jogos (cartas, dominó, por vezes dama ou bocha). Nesses bairros, destituídos de equipamentos públicos de lazer, o campo de várzea segue sendo, muitas vezes, a única opção de lazer e sociabilidade possíveis".

Nesse cenário, a região da Capela do Socorro, na zona sul da cidade, é a mais bem servida. Com o 24º lugar no ranking do IDH paulistano (a cidade é dividida em 31 sub-regiões, chamadas pela prefeitura de subprefeituras), tem 32 campos para uma população de 595 mil pessoas.

Apesar do número que impressiona, não é na zona sul que está a maior concentração de campos. Em Ermelino Matarazzo, sub-região com apenas 15 quilômetros quadrados de área (contra 134 quilômetros quadrados da Capela do Socorro, por exemplo), conta com nove campos públicos, mais de um campo municipal a cada 2 km.

O levantamento também mostra como a zona leste respira o futebol de várzea. A região conta com 122 campos públicos, 41% do total da cidade – sendo que a população da região representa 35% dos moradores de São Paulo. Logo depois vem a zona sul, com 93 campos (em uma área duas vezes maior). Juntas, as duas macrorregiões reúnem 72% do total de campos de toda a cidade. E a explicação para isso é simples.

"Zona leste e zona sul têm mais campos já que são muito mais populosas e pobres que as outras zonas. A zona norte tem diversos times "clássicos" da várzea, por ser mais antiga. A leste, além da população, tem e teve muitos campos de várzea de rio. A sul é, entre todas, a de ocupação mais recente, mas como o futebol de várzea se reproduz nas áreas mais afastadas, pobres e onde há espaço e costume de jogar bola, é normal encontrarmos mais campos nas zonas sul e leste. Os que haviam no resto da cidade foram sendo desapropriados por obras e construções. Na região central, por exemplo, eram centenas", analisa o também geógrafo Danilo Cajazeira, autor de "Geografia(s) do Futebol Contemporâneo em São Paulo: Espaços do Jogar e do Torcer na Metrópole" – e, ele próprio, jogador de futebol de várzea.

A estrutura

Apesar do tamanho da cidade e das diferenças econômicas e sociais de cada região, a gestão desses campos é muito parecida. A maioria deles (229) adota o modelo de Clubes da Comunidade (CDC), usado pela prefeitura de São Paulo para que os próprios moradores cuidassem dos equipamentos esportivos de seu bairro. Cada CDC é gerido pela união de, no mínimo, três entidades locais. No caso dos campos, normalmente são times de futebol amador.

Nesses locais, durante a semana costumam ser realizadas escolinhas de futebol para crianças da região. Aos fins de semana, o espaço recebe times da região, que pagam pelo uso do espaço (e o dinheiro é usado na manutenção das instalações). O vídeo acima mostra um exemplo disso. As diferenças ficam por conta da infraestrutura. Além do tradicional bar, todo CDC pesquisado tem ao menos campo, alambrado e vestiários. Também podem contar com grama sintética ou refletores, dependendo do interesse de políticos locais para conseguir verba com a prefeitura. Na Capela do Socorro, por exemplo, pelo menos metade dos campos foi reformada para receber grama sintética.

Esse modelo de gestão, aliás, é o que faz com que mais de 200 campos ainda não sejam listados como equipamento esportivo municipal pela Prefeitura de São Paulo. Essas instalações são chamadas de campos de rodízio e são criados em locais públicos adotados ou invadidos pelas comunidades. Normalmente, uma pessoa assume a manutenção do local mas não consegue cumprir todas as etapas burocráticas para transformar o campo em um CDC, por exemplo.

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