Calotes, mentiras e atrasos: profissionais preferem a várzea para receber em dia

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

  • Milton Flores e Renato Cordeiro/UOL

    Fred Odebe, Macedo e Daniel Eze, que vivem do futebol de várzea

    Fred Odebe, Macedo e Daniel Eze, que vivem do futebol de várzea

Luizinho tem 29 anos e poderia estar defendendo um time profissional. Mas está jogando no futebol de várzea de São Paulo. Decisão errada? Você diz isso porque só olha para o sucesso das estrelas dos times da primeira divisão. Amplie um pouco o foco de visão.

Pergunte para quem já passou por times de divisões menores. Fale com quem já jogou em times do interior do país. Você vai descobrir que o cenário amplo do futebol não é milionário como aquele da TV. "Rodei muito pelo interior. E é sempre a mesma coisa. Você joga três meses. Recebe só um. E o dinheiro não cai mais", conta Luizinho.

Na várzea, não. O dinheiro é menor, o jogador não tem vínculo empregatício, mas depois de todos os jogos o envelope com o bicho está lá. É sagrado. "Você não recebe tão bem. Os valores são menores. Mas recebe sempre. Estou há três anos na várzea. E sempre recebi em dia", conta o atacante.

Calote na Polônia

  • Bruno Doro/UOL

E não ache que isso só acontece no Brasil. Luizinho defendeu um time polonês por seis meses. Disputou a primeira divisão local. Sua equipe acabou rebaixada e o prometido pela transferência nunca caiu na conta. "Foi uma experiência boa, de vida. Passei muito frio, conheci outra cultura, aprendi como é viver em outro país. Mas não recebi", lembra.

Voltou para o Brasil Teve propostas para rodar pelo Brasil. Poderia ter jogado no Centro Oeste, no Nordeste. Preferiu ficar em São Paulo. "É claro que não é fácil. Você tem de jogar por mais de um time, cuidar do físico. Alguns times até ajudam se você se machuca, mas nunca é bom estar parado. Mas consigo sobreviver do futebol, mesmo sem ser profissional", conta o jogador.

A aposentadoria dos campos acabou sendo benéfica. Ele é o atual artilheiro da Copa Kaiser, o principal torneio amador da cidade de São Paulo. É, também, um dos destaques do Jardim São Carlos, de Guaianases, um dos melhores times do torneio.

Problemas no Nordeste

  • Rodrigo Campos/Copa Kaiser

Bill, de 18 anos e 1,93m, também está entre os principais goleadores da Copa Kaiser. E, mesmo com a pouca idade, já sabe como é difícil ter sucesso no futebol profissional. No ano passado, um empresário o levou para o Olímpico, do Sergipe.

O que deveria ser a grande oportunidade foram meses desperdiçados. "Passei o tempo treinando por lá. Mas nunca tive chance. Acabou o período de testes, não fui aprovado e voltei para São Paulo", conta o garoto. Na capital paulista, sem contrato com o clube, acabou também o acordo com o empresário.

Quem o viu em campo avisa: além de grande, ele é um jogador técnico, que se posiciona bem na área. E ainda chuta bem. Falta, no entanto, alguém que o ajude. "Hoje, estou sem empresário, sem ninguém para ajudar. Assim, é quase impossível encontrar um clube", conta.

Mentiras em São Paulo

  • Bruno Doro/UOL

Com toque refinado e grande visão de jogo, o motoboy Rafael da Silva Nascimento assume o papel de maestro. Rafinha é o camisa 10 do Internacional do Moinho Velho, que, como o Inter do Jaraguá, também já deu adeus à Copa Kaiser. E, como Bill e Luizinho, já tropeçou no futebol profissional.

Aos 27 anos, já tentou a sorte no futebol profissional. Tinha 23 anos, assinou um contrato com o CATS, o Taboão da Serra, mas nada deu certo. "Infelizmente, não pude trabalhar com pessoas sérias. Foram muitas promessas e pouca coisa foi cumprida. Fiquei sem receber e tive de desistir. Precisa pagar as contas. Virei motoboy, mas ainda sonho em viver do futebol. Se Deus quiser, ainda dá tempo", fala o jogador.

O caso é parecido com o do atacante Macedo, artilheiro da Kaiser no ano passado. Jogador do Cantareira, de Heliópolis, ele é profissional da várzea, defende três, quatro equipes por fim de semana. Construiu casa, comprou moto, tudo com o dinheiro do futebol amador. Algo que o futebol profissional não permitiu.

Quando tinha 18 anos, Macedo se submeteu a uma bateria de testes no Juventus, da Móoca, um dos times mais tradicionais da cidade. "Fiz seis peneiras. Fui aprovado. Mas quando ia ser profissionalizado, o técnico foi demitido. Quando chegou o novo treinador, mandou todo mundo embora. Eu também. Foi uma desilusão muito grande".

Vítimas até entre estrangeiros

  • Milton Flores/UOL

E não são só os brasileiros que sofrem com as incertezas do futebol nacional. No Ajax, da Vila Rica, por exemplo, dois nigerianos estão provando que é possível viver do futebol amador no País do Futebol. Fred Odebe e Daniel Eze chegaram ao país para jogar bola, mas acabaram esquecidos.

O primeiro é zagueiro e já defendeu até mesmo a seleção do país. Chegou para vestir a camisa do Grêmio Barueri, justamente nos anos das mudanças de sede – o time foi para Presidente Prudente e depois voltou para a grande São Paulo entre 2010 e 2011. Acabou esquecido pelos empresários que o trouxeram para o país e hoje joga no Ajax, da Vila Rica.

O segundo é centroavante. Jogou nas categorias de base do Hertha Berlin, mas problemas de documentação o mandaram para São Paulo. Fez testes na Ponte Preta, no Flamengo de Guarulhos. Acabou aprovado no Bahia de Feira de Santana. Então, veio a lesão no joelho esquerdo. E, como Fred, foi esquecido por quem o trouxe ao Brasil.

Teve, inclusive, de operar o joelho pelo SUS, já que não tinha vínculo com nenhuma equipe para bancar o procedimento, nem apoio de um empresário para arcar com os custos. Recuperado, é um dos destaques do Ajax. Os dois, aliás, foram campeões da Copa Kaiser do ano passado. "É como se fosse um título profissional. Eu não consegui virar profissional na Europa e em alguns lugares do Brasil, mas tenho orgulho de dizer que sou profissional da várzea agora", disse o atacante.

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