Rúgbi brasileiro subverte machismo e privilegia mulheres para a Olimpíada

Adriano Wilkson

Do UOL, em São José dos Campos (SP)

  • Divulgação/CBRu

    Érika Weiss, atleta de rúgbi, em treino no CT da confederação brasileira em SP

    Érika Weiss, atleta de rúgbi, em treino no CT da confederação brasileira em SP

As adolescentes Letícia Escobar e Érika Weiss às vezes se perdiam no meio daqueles 15 garotos, alguns dos quais com uma rotina de musculação aparentemente inspirada na compleição física de Lucas Duque, o melhor jogador da seleção brasileira de rúgbi, apelidado de "O Tanque". Era um treino em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Havia um sol para cada um dos adolescentes e, no meio deles, Letícia e Érika. Elas conheceram o esporte há pouco tempo e sonham em chegar à seleção que disputará pela primeira vez a Olímpiada, em 2016.

Letícia agarra a bola e corre. Foge dos trancos e, aos barrancos, se aproxima da linha do try, o "gol" do rúgbi. Ela faz uma careta enquanto corre, colada à linha lateral. Um dos gigantes pula sobre ela, segura suas pernas, empurrando-a para o chão. Letícia cai, mas não solta a bola. Try! Ela levanta e comemora discretamente seu avanço.

"Você não tem medo de se machucar jogando no meio de tantos homens", a reportagem pergunta depois do treino. "Só se machuca quem tem medo", ela responde. Letícia e Érika se inspiram em nomes como Edninha (Santini) e Paulinha (Ishibashi), jogadoras da seleção de rúgbi de sete, a modalidade olímpica, que há dez anos atropela seus adversários sul-americanos e já chegou entre as dez melhores do mundo.

O rúgbi, esse esporte sempre associado a homens barbados, olhos roxos e uma virilidade que às vezes flerta com a violência, está virando no Brasil, cada vez mais, um esporte de meninas.

Pelo menos são elas que têm os melhores resultados internacionais e, por isso, recebem mais dinheiro e atenção da confederação que organiza o rúgbi no país. O Brasil venceu todos os dez campeonatos sul-americanos femininos, que acontecem desde 2004. O Brasil venceu todas as 52 partidas desses campeonatos. O Brasil nunca perdeu um jogo oficial para uma seleção sul-americana. E também ficou 18 jogos sem sofrer um ponto sequer para essas seleções.

O desafio agora é chegar ao nível das potências do esporte. Na última etapa brasileira do circuito mundial, em fevereiro, a seleção foi o nono melhor time e conseguiu uma vitória de 30 a 0 sobre a Irlanda, país em que o esporte é tão popular quanto o futebol. Seu bom desempenho tem feito o time ser convidado para as etapas do circuito mundo afora, mesmo quando a classificação não vem em campo.

Mesmo assim, o esporte continua confinado a um nicho restrito no país. A Confederação Brasileira de Rugby anunciou na última terça-feira um patrocínio de R$ 1,85 milhão da Unilever para desenvolver e massificar o esporte. Os objetivos são de longo prazo, já que boa parte do investimento será concentrada na revelação de talentos entre 15 e 19 anos.

As seleções masculinas (nas modalidades de 15 e 7 jogadores) ainda não conseguiram chegar ao nível de potências regionais como Argentina, Uruguai e Chile, países com tradição muito mais antiga no esporte. O melhor resultado dos homens foi uma vitória em 2011 sobre uma seleção secundária da Argentina.

Em 2016, portanto, são as meninas a única esperança de chegar perto de medalha na Olímpiada do Rio, ocasião em que o rúgbi voltará aos Jogos após 85 anos.

"A cultura nos países em que o rúgbi é forte é a de que os homens jogam rúgbi e as mulheres jogam hóquei na grama", explica Maurício Coelho, treinador assistente da seleção masculina brasileira. "No Brasil nunca houve essa cultura, e o rúgbi feminino começou a ser desenvolvido em alto rendimento aqui no começo dos anos 2000. Com a volta do esporte à Olimpíada, a federação internacional obrigou os países a terem também seleções femininas. O Brasil já tinha e saiu um pouco na frente dessa corrida."

Edninha treinou cinco anos entre homens e virou a melhor jogadora do país

Edna Santini tem 22 anos e foi descrita por Fernando Portugal, o capitão da seleção masculina e jogador mais conhecido do país, como a "Marta do rúgbi". Ele já era o principal nome do esporte aqui quando Edninha começou a jogar com o time masculino do São José dos Campos, onde os dois nasceram. "Você olhava para ela, com esse tamaninho, e não dava nada. Mas quando vinha um cara enorme na frente, ela encarava o tranco, não fugia da pancada."

Divulgação/CBRu
Edninha Santini, da seleção brasileira de rúgbi de sete, pula para o try

Aos 10 anos, ela conheceu o rúgbi através de um projeto social da prefeitura que levou um treinador para o bairro muito pobre onde ela morava. Seus vizinhos, meninos, começaram a praticar. Ela quis também. Mas não havia um time para garotas de dez anos. Ela começou a jogar com os homens, a maioria mais velhos. Isso durou até seus quinze anos.

Seu pai era autônomo, sua mãe costureira e eles não tinham como financiar a aventura da filha (eles não conheciam as regras do rúgbi, não sabiam nem pronunciar o nome do esporte). Achavam que era coisa de criança e que passaria logo. Mas Edninha insistiu. A mãe começou a lavar em casa o uniforme dos jogadores do time masculino como uma forma de pagar os custos do clube com a atleta.

"Um dia a Edninha foi receber uma premiação em São Paulo e a mãe dela foi junto", lembra Sami Sobrinho, presidente da confederação. "Eu me aproximei e a parabenizei pela filha, por sua criação exemplar, por tudo que elas tinham passado para chegar até ali. Ela ia falar alguma coisa, mas aí começou a chorar. A filha ia ganhar uma bolsa de R$ 1.500 que era o triplo do que ela e o marido faziam em um mês."

Há um ano, Edninha mora em São Paulo junto com as outras jogadoras da seleção feminina, que têm técnicos estrangeiros e recebem bolsas do governo federal e da confederação. Elas treinam todos os dias e não precisam se dedicar a outras atividades além do rúgbi, como acontecia até recentemente no caso da seleção masculina.

Os homens estão há apenas seis semanas "centralizados" em São José dos Campos e, entre eles, há atletas que se dedicam a outra carreira paralela ao esporte, como é o caso do próprio Lucas Duque, o Tanque, que treina e dá plantões como médico.

A bolsa dos homens também é menor do que a das mulheres.

Para o investimento dar retorno em 2016, há muito trabalho pela frente, a começar pelas eliminatórias para o circuito mundial da próxima temporada, que acontecerá em Hong Kong no mês que vem.

O projeto dos dirigentes é que os frutos plantados hoje sejam colhidos apenas na década de 2020, quando os adolescentes revelados nos centros de treinamento que devem ser espalhados pelo país estejam no auge da forma.

Mas tente falar em longo prazo a eles... Perguntei a Érika Weiss, a adolescente de 17 anos que treina três dias por semana com meninas e dois entre garotos, se ela acredita que estará na seleção jogando a Olimpíada em 2016. "É claro que sim! Eu acho que jogo bem, confio em mim. Se eu não for a primeira a acreditar, quem vai acreditar, né?"

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