Em São Paulo, é possível comprar casa e sustentar família apenas como jogador de futebol de várzea

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

  • Milton Flores/UOL Esporte

    Macedo, do Cantareira, tenta lance contra o Ouro Preto no último fim de semana

    Macedo, do Cantareira, tenta lance contra o Ouro Preto no último fim de semana

Sabe porque o Brasil é o país do futebol? Bom, é claro que existem razões mais glamourosas. Os cinco títulos mundiais. O fato de Pelé ter nascido por aqui. Os oitos títulos de melhores do mundo que os craques brasileiros já conquistaram. Os quatro de Marta na versão feminina. Mas existe um motivo muito maior, muito mais simples. Mesmo sem ser jogador profissional, sem ter um salário que cai em sua conta mensalmente, é possível viver como jogador de futebol. Na várzea.

Exemplos disso não faltam, mas na edição deste ano da Copa Kaiser, o principal torneio de futebol amador da cidade de São Paulo, um deles chama atenção. O nome dele é Edivan Macedo dos Santos, ele tem 31 anos e vive como profissional da várzea desde os 19. Com seus gols, já comprou uma casa, uma moto e sustenta a família. "O futebol é bom para quem se esforça. Se você se cuidar, se fizer as coisas direito, vai receber em troca", diz.

Esforço, aliás, é a palavra. "Eu jogo por cinco times. A cada fim de semana, são três jogos. Mais do que isso fica complicado. Mas durante a semana também tem jogo. E a cada partida, a gente vai ganhando um pouquinho. No fim do mês, é o dinheiro para pagar as contas", explica.

Virar um profissional da várzea, claro, não foi a primeira opção do jogador. Macedo tentou, por um ano inteiro, ser profissional. Quando tinha 18 anos, ele se submeteu a uma bateria de testes no Juventus, da Móoca, um dos times mais tradicionais da cidade. "Fiz seis peneiras. Fui aprovado. Mas quando ia ser profissionalizado, o técnico foi demitido. Quando chegou o novo treinador, mandou todo mundo embora. Eu também. Foi uma desilusão muito grande".

Dispensado do Juventus, chegou a ter propostas para sair de São Paulo. Uma das melhores foi de Santa Catarina. Só que não existiam garantias. E histórias de garotos bons de bolas que iam para o sul do Brasil e acabavam esquecidos, sem salário, sem clube ou empresário, o fizeram abandonar o sonho. "Eu sabia que o futebol poderia ser meu sustento. Faço isso desde os sete anos. Tem sempre uma pessoa que monta um time, chama alguns garotos, paga um refrigerante depois do jogo. Mas o que aconteceu no Juventus foi muito difícil. Fiquei um ano sem pegar na bola", lembra Macedo.

Após dez anos, a desilusão passou. E os resultados nos gramados estão aparecendo. Ele até mesmo superou uma rivalidade antiga que existe entre duas das maiores favelas da cidade: Heliópolis e Paraisópolis. O Cantareira, em que Macedo joga, é da primeira. Mas o atacante mora na segunda. "As pessoas falam de rivalidade. Mas acho que não existe muito disso não. Eu venho de Paraisópolis, todo domingo estou em Heliópolis e sempre foi tudo bem".

Essa boa relação, aliás, tem muito a ver com o desempenho do atacante dentro dos campos de terra. Nesta edição da Kaiser, já são 13 gols, marca considerável para um torneio amador. E seu time, o Cantareira, é líder de seu grupo e tem grande chance de classificação para as oitavas de final. Seria a primeira vez que a equipe chega tão longe.

Com salário dependendo de performance, jogador entra em campo machucado

  • Milton Flores/UOL

O caso de Macedo não é único. O número de profissionais da várzea é grande, com vários atletas jogando três ou quatro partidas por fim de semana. Como o salário só chega ao fim do mês se estiver sempre jogando, as lesões são a grande preocupação dos profissionais da várzea.

"Até hoje, só tive duas lesões graves. Em uma quase fraturei o tornozelo e precisei ficar seis meses sem jogar. O pessoal que costuma chamar a gente para as partidas acabou ajudando e eu superei essa fase. E nesse ano, comecei a sentir dores no tendão calcâneo. Não foi um rompimento, mas tive de jogar lesionado", admite o atacante.

Fisiologistas e especialistas em preparação física, porém, admitem que, com uma rotina tão exigente, casos com o de Macedo, com poucas lesões, são raros. Além disso, é impossível que os atletas mostrem o seu melhor futebol nos campos de várzea com rotinas tão desgastantes.

"Jogando três ou quatro partidas por fim de semana, ele só vai estar bem no primeiro jogo. A partir do segundo, o desgaste é muito grande, mesmo com jogos menores (na Copa Kaiser, por exemplo, os jogos têm 35 minutos em cada tempo). E o pior é que esse pessoal não deve ter a alimentação pré e pós-jogo adequada. A incidência de lesões deve ser muito grande. A musculatura não é preparada para essa dimensão de esforço", analisa Benê Lima, preparador físico do Bragantino.

Adelsio Reis, fisiologista e preparador físico do Classe A, atual campeão da Copa Kaiser, sabe bem como os jogadores podem chegar debilitados a suas partidas. "É claro que ninguém aguenta um ritmo desses. Se os jogadores profissionais precisam de dois, três dias para se recuperar, imagina o amador, que não está preparado para isso", fala Adelsio. "Por isso, nós temos acordos com nossos atletas. Jogamos de 15 em 15 dias na Kaiser. Nesses domingos, eles não jogam por nenhum outro time. Nos domingos sem jogo, até estimulamos que eles entrem em campo, para manter o ritmo. Aos sábados, o acordo também é se poupar".

Copa Kaiser de futebol amador
Copa Kaiser de futebol amador

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